Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Ildefonso de Sambaíba - interrogativo / têmperas da criação

Eis aqui dois poemas acerca do mesmo tema concernente à exteriorização da subjetividade humana por meio da arte: o primeiro, sobre o ofício da palavra em versos – essa necessidade quase compulsiva de gestar beleza e harmonia através da linguagem –; o segundo, mais conforme às competências e aos artifícios das artes plásticas.

 

Ao fundo dessa paisagem, os mesmos predicados de ordem estética, colimados num prévio jorro de pensamentos na mente do artista, pejados talvez de imaginação ou de fantasia e vocacionados a trazer à experiência humana novos sentidos, outros tentames, além do prazer e do gáudio que podem estar à volta de todo ato criador.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ildefonso de Sambaíba

(n. 1953)

 

interrogativo

 

sou, acaso, poeta?

incerteza e desejo

de não insistir

 

mas, poematizar

é uma forma de

existir

 

eu saberia viver

sem sorver esse

 

elixir?

 

01.04.18

 

seção: “numérios” (p. 32)

 

Retrato de um Artista

(supostamente Antonio Vassilacchi, conhecido por L’Aliense)

(Jacopo Palma, o Jovem: pintor italiano)

 

têmperas da criação

 

contemple-se a estética da obra

à distância da estática do minério.

ele apenas é o suporte da forma:

material é o entalhe;

imaterial, o detalhe

 

– soberano é o pouso da arte!

autônoma, exibe jus deslumbres

inda que posta em frágil cortiça:

na matéria ferida

a beleza é aferida

 

antes das mãos mesmas que

moldam o castelo na areia, ou

regulam a têmpera do bronze,

na mente que a cogita

a inspiração já habita:

 

o pensamento é causa

primeira da criação!

 

29.05.21

 

seção: “artérios” (p. 63)

 

Referência:

 

SAMBAÍBA, Ildefonso de. interrogativo / têmperas da criação. In: __________. a revoada dos albatrozes. 1. ed. Brasília, DF: Art Letras Editora, mai. 2022. p. 32 e 63, respectivamente.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Francisco Brines - A fabulosa eternidade

Como um homem que se aproxima da derradeira curva da vida, o falante – recordando as imagens que lhe ficaram na mente por conta das vicissitudes pelas quais passou, seus amores, momentos felizes e ilusões –, vê nesse átimo fugaz o sopro de eternidade a perpassar o sonho em que envolta toda a precária existência humana.

 

As imagens evocadas pelo poeta configuram metáforas inequívocas para uma síntese pictórica epilogal: sons, cores, odores e miradas panorâmicas, sinais de um tempo mortiço a prenunciar metamorfoses nos contentores de uma ampulheta a converter os tardios anelos de um corpo – ainda sedento por mais luzes nesse pomar outonal – a um outro sentido de presença, no qual o tempo não se estima por meros dias, meses ou anos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Francisco Brines

(1932-2021)

 

La fabulosa eternidad

 

Es rosa el monte tras el mudo huerto

del otoño. Los pájaros confunden

ramas, vuelos y trinos; y en el mar

se adormecen las velas solitarias.

Cuelgan de las palmeras los dorados

racimos, y los aires vienen breves

a golpear las ramas del naranjo.

Un aroma de tardíos jazmines

da a mi carne vigor, y juventud.

Los rosales son zarzas y son fuego:

se desnudan de olor. Y son sus flores

sangrientas, blancas, rosas, amarillas.

La casa esplende bajo el sol tardío;

el tiempo es una luz ya muy cansada.

 

Puntean las estrellas, y algún frío

baja el azul; es hosca la llegada

de los cuervos que baten el pinar.

Aquí, en este lugar, supo mi infancia

que era eterna la vida, y el engaño

da a mis ojos amor. Hoy miro el mundo

como el amante sabe, abandonado,

que quien le desdeñó le merecía.

Y todo pudo ser, pues fue vivido,

y este rumor de tiempo que yo soy

recuerda, como un sueño, que fue eterno.

 

En: “El otoño de las rosas” (1986)

 

Eternidade

(Teresa Gimenez: pintora espanhola)

 

A fabulosa eternidade

 

É róseo o monte por trás do mudo pomar

do outono. Os pássaros confundem

ramos, voos e trinados; e no mar

adormecem as velas solitárias.

Pendem das palmeiras os dourados

racemos, e as aragens vêm breves

para fustigar os ramos da laranjeira.

Um aroma de tardios jasmins

dá à minha carne vigor, e juventude.

Os roseirais são sarças e são fogo:

despojam-se de fragrância. E suas flores são

sangrentas, brancas, róseas, amarelas.

A casa esplende sob o sol tardio;

o tempo é uma luz já muito cansada.

 

Pontilham as estrelas, e algum frio

o azul faz descer; é soturna a chegada

dos corvos que batem no pinhal.

Aqui, neste lugar, soube minha infância

que era eterna a vida, e o ilusório revela

o amor aos meus olhos. Hoje vejo o mundo

como o amante sabe, abandonado,

tal como quem o desdenhou o merecia.

E tudo pôde ser, pois foi vivido,

e este rumor de tempo que eu sou

recorda, como um sonho, que foi eterno.

 

Em: “O outono das rosas” (1986)

 

Referência:

 

BRINES, Francisco. La fabulosa eternidad. In: ORTEGA, Julio (Ed.). Los 100 grandes poemas de España y América. 1. ed. México, D.F.: Siglo XXI Editores, 2000. p. 334.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Alfred de Musset - Tristeza

Neste soneto, com elegíaco matiz pela cessação de uma conjuntura ditosa no passado – plena de vigor, de alegria, de amigos e até de uma confiança ufana em seu próprio valor –, há um giro de interpretação do poeta em relação às coisas deste mundo – agora um compósito de aparências, tão iludentes quanto enganosas.

 

Doravante, o recurso cinge-se à Verdade e aos seus eternos predicados, ainda que o falante deságue num vale de lágrimas ou depare com os tons cinzentos do desencanto: num misto de razão e fé, o poeta procura resgatar a plenitude de uma vida significativa, apropriando-se dos efeitos da tristura em que imergira, como um bem a dar sustento a um homem novo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Alfred de Musset

(1810-1857)

 

Tristesse

 

J’ai perdu ma force et ma vie,

Et mes amis et ma gaieté;

J’ai perdu jusqu’à la fierté

Qui faisait croire à mon génie.

 

Quand j’ai connu la Vérité,

J’ai cru que c’était une amie;

Quand je l’ai comprise et sentie,

J’en étais déjà dégoûté:

 

Et pourtant elle est éternelle,

Et ceux qui se sont passés d’elle

Ici-bas ont tout ignore.

 

Dieu parle, il faut qu’on lui reponde,

Le seul bien qui me reste au monde

Est d’avoir quelquefois pleuré.

 

A Tristeza do Rei

(Henri Matisse: pintor francês)

 

Tristeza

 

Eu perdi minha vida e o alento,

E os amigos, e a intrepidez,

E até mesmo aquela altivez

Que me fez crer no meu talento.

 

Vi na Verdade, certa vez,

A amiga do meu pensamento;

Mas, ao senti-la, num momento

O seu encanto se desfez.

 

Entretanto, ela é eterna, e aqueles

Que a desprezaram – pobres deles! –

Ignoraram tudo talvez.

 

Por ela Deus se manifesta.

O único bem que ainda me resta

É ter chorado uma ou outra vez.

 

Referência:

 

MUSSET, Alfred de. Tristesse / Tristeza. Tradução de Guilherme de Almeida. In: ALMEIDA, Guilherme de (Seleção e Tradução). Poetas de França. Prefácio de Marcelo Tápia. 5. ed. São Paulo, SP: Babel, 2011. Em francês: p. 42; em português: p. 43.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

José Carlos Capinan - Poema Intencional

Leio o poema de Capinan e logo me vem à mente a máxima de Ortega y Gasset (1883-1955), inserta na “Meditação Preliminar”, em “Meditações do Quixote”: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo tampouco me salvo.” (1914, p. 43-44). E mais à frente: “O homem tem uma missão de clareza sobre a terra.” (1914, p. 123).

 

Há na realidade à volta do ser humano a potencialidade de mudança, de melhoria de sua condição de vida mediante um impulso direcionado à ação sobre as circunstâncias que o delimitam: a inação e a omissão não são opções capazes de o levar a uma melhor compreensão de si mesmo!

 

Daí a inflexão a um “tenho que” nos versos finais do poema, caracterizando essa relação obrigacional de atuar, de arquitetar propósitos, de projetar “aríetes” capazes de romper as barreiras que nos causam asfixia: somente assim materializamos nossas intenções, reabsorvendo nossas circunstâncias.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Carlos Capinan

(n. 1941)

 

Poema Intencional

 

Há em cada substância a sua negativa

e a possibilidade de processo

 

processo inexorável a ir ao fim

meta a ser de pão e flores

 

e a rosa será uma outra rosa

e nós já não seremos

 

vejo nos olhos tristes de maria

um filho possível

 

vejo na árvore antiga do parque

uma cadeira, uma muleta, mas sobretudo um aríete

 

descubro na boca angustiada

o hino pronto e pesado

 

é inevitável o acontecimento

mas procuro ser um elemento

 

carrego em mim a utilidade

sei que posso dar existência

 

e na minha total renúncia

utilizo-me para um bem maior

 

tenho que colher a rosa

e transformá-la

 

tenho que possuir maria

e dar-lhe um filho

 

tenho que transformar a árvore do parque

em cadeira, em muleta, mas sobretudo em aríete.

 

Trabalhadores

(Di Cavalcanti: pintor carioca)

 

Referência:

 

CAPINAN, José Carlos. Poema intencional. Em: FELIX, Moacyr (Org.). Violão de rua: poemas para a liberdade. Vol. II. Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira, nov. 1962. p. 84-85. (‘Cadernos do Povo Brasileiro’; Volume Extra)

 

ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote: meditación preliminar & meditación primera. Madrid, ES: Publicaciones de la Residencia de Estudiantes, 1914. (Serie II; Vol. I)