Alpes Literários

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Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 30 de abril de 2023

Cesare Pavese - O vislumbre da alba

Decerto o falante, neste poema, dirige-se à sua companheira, atribuindo-lhe predicados de “luz” e de “manhã”, o que equivale à aurora com todas as suas riquezas simbólicas, bem assim ao desabrochar para a plenitude, depois das trevas que esculpem os escaninhos da noite, por onde a alma vaga aflita, envolta em temores.

 

Do subliminar à consciência, do ceticismo à esperança, da invernia à primavera, do torpor ao despertar: a rota de mutação representada, no fraseado de Pavese, por imagens subtraídas à natureza e seus reiterados ciclos, trazendo renascenças, recomeços, outras tantas oportunidades para experimentar o amor, o êxtase de momentos felizes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Cesare Pavese

(1908-1950)

 

Lo spiraglio dell’alba

 

In the morning

you always

come back (*)

 

Lo spiraglio dell’alba

respira con la tua bocca

in fondo alle vie vuote.

Luce grigia i tuoi occhi,

dolci gocce dell’alba

sulle colline scure.

Il tuo passo e il tuo fiato

come il vento dell’alba

sommergono le case.

La città abbrividisce,

odorano le pietre –

sei la vita, il risveglio.

 

Stella sperduta

nella luce dell’alba,

cigolío della brezza,

tepore, respiro –

è finita la notte.

 

Sei la luce e il mattino.

 

20 marzo ’50

 

O romper da aurora

(Marie-Line Vasseur: artista canadense)

 

O vislumbre da alba

 

O vislumbre da alba

respira com teus lábios

ao fundo das ruas desertas.

Luz cinzenta os teus olhos

doces pingos da alba

sobre colinas escuras.

O teu passo e o teu hálito

como o zéfiro da alba

submergem as casas.

A cidade se move,

trescalam as pedras

– és o despertar, a vida.

 

Estrela perdida

na luz do alvorecer,

cicio da brisa,

tepidez, respiro

– terminou a noite.

 

És a luz e a manhã.

 

Nota:

 

(*). “Pela manhã, sempre retornas”.

 

Referência:

 

PAVESE, Cesare. Lo spiraglio dell’alba / O vislumbre da alba. Tradução de Henriqueta Lisboa. In: LISBOA, Henriqueta. Poesia traduzida. Organização, introdução e notas de Reinaldo Marques e Maria Eneida Victor Farias. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2001. Em italiano: p. 438; em português: p. 439. (‘Inéditos & Esparsos’)

sábado, 29 de abril de 2023

Luis Fernando Verissimo - O único animal

O ser humano é um leque de possibilidades, algumas positivas, outras deploráveis; alguém capaz de valorar previamente o resultado de suas ações e, ainda assim, agir comandado por suas emoções, pejadas de irracionalidade: neste poema, o autor gaúcho elenca os atributos que somente a nós pertencem, e outros tantos que não nos são exclusivos, acompanhados, sem embargo, por inflexões adversativas que trasladam o discurso de volta ao plano de nossas particularidades.

 

O homem e suas verdades – meros “erros irrefutáveis” (*), segundo Nietzsche – conformam essa nebulosa indeterminada que oscila entre tantos polos: justificativas infundadas e racionalizações são o que mais se observa quando os fatos teimam em negar as ideias propugnadas por alguém, pondo a descoberto um amontoado de contradições – a nos compendiar tão caracteristicamente!

 

J.A.R. – H.C.

 

Luis Fernando Verissimo

(n. 1936)

 

O único animal

 

O homem é o único animal...

... que ri

... que chora

... que chora de rir

... que passa por outro e finge que não vê

... que fala mais do que papagaio

... que está sempre no cio

... que passa trote

... que passa calote

... que mata a distância

... que manda matar

... que esfola os outros e vende a pele

... que alimenta as crias, mas depois

cobra com chantagem sentimental

... que faz o que gosta escondido e o que não gosta em público

... que leva meses aprendendo a andar

... que toma aula de canto

... que desafina

... que paga para voar

... que pensa que é anfíbio e morre afogado

... que pensa que é bípede e tem problema de coluna

... que não tem rabo colorido, mas manda fazer

... que só muda de cor com produtos químicos ou de vergonha

... que tem que comprar antenas

... que bebe, fuma, usa óculos, fica careca, põe o dedo no nariz

e gosta de ópera

... que faz um boneco inflável da fêmea

... que não suporta o próprio cheiro

... que se veste

... que veste os outros

... que despe os outros

... que só lambe os outros

... que tem cotas de emigração

... que não tem uma linguagem comum a toda a espécie

... que se tosa porque quer

... que joga no bicho

... que aposta em galo e cavalo

... que tem gato e cachorro

... que tem lucro com os ovos dos outros

... que caça borboleta

... que usa gravata e pensa que Deus é parecido com ele

... que planta e colhe

... que planta e colhe e mesmo assim morre de fome

... que foi à Lua

... que apara os bigodes

... que só come carne crua em restaurante alemão

... que gosta de escargot (fora o escargot)

... que faz dieta

... que usa o dedão

... que faz gargarejo

... que escraviza

... que tem horas

... que irrita passarinho

... que poderia ter construído Veneza e destruído Hiroshima

... que faz fogo

... que se analisa

... que faz ginástica rítmica

... que sabe que vai morrer

... que sabe que vai morrer e mesmo assim vai atrás do motorista

que cortou sua frente só para xingar a mãe dele e se desagravar porque

não leva desaforo pra casa de vagabundo nenhum

... que sabe que vai morrer e mesmo assim, ou por causa disto,

fica fazendo caretas na frente do espelho

... que se compara com os outros animais

... que se mata

... que se pinta

... que tem uma cosmogonia

... que senta e cruza as pernas

... que chupa os dentes

... que pensa que é eterno.

 

O homem não é o único animal...

... que constrói casa, mas é o único que precisa de fechadura

... que foge dos outros, mas é o único que chama de retirada estratégica

... que se ajoelha, mas é o único que faz isto voluntariamente

... que trai, polui e aterroriza, mas é o único que se justifica depois

... que engole sapo, mas é o único que não faz isso pelo valor nutricional

... que faz sexo, mas é o único que precisa de manual de instruções.

 

Introspecção

(Aaron Westerberg: pintor norte-americano)

 

Nota:

 

(*). Trata-se, de fato, de uma passagem do pensamento nº 265 de Nietzsche (1844-1900), em “A Gaia Ciência”, literalmente: “265 – Supremo cepticismo. – Quais são então, em última análise, as verdades do homem? São os seus erros irrefutáveis.” (v. referência abaixo)

 

Referências:

 

NIETZSCHE, Frederico. 265 – Supremo cepticismo. In: __________. A gaia ciência. 6. ed. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa, PT: Guimarães Editores, 2000. p. 170.

 

VERISSIMO, Luis Fernando. O único animal. In: __________. poesia numa hora dessas? Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2010. p. 15-19.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

José Ángel Valente - Poeta em tempo de miséria

O poeta espanhol aqui descreve como se comportava o poeta – não nomeado, presumindo-se, por conseguinte, uma dicção a designar o coletivo dos autores líricos – no auge da ditadura de Franco, amordaçado e sem poder dar livre vazão ao pensamento, tendo que silenciar para manter a posição, o direito à vida e ao sustento.

 

São as misérias que decorrem do exercício desnaturado da política, no caso, por quase quarenta anos: Franco, diga-se de passagem, ascendeu ao poder não pelo voto, senão por um golpe militar que acabou por instituir uma ditadura conservadora com distintivos fascistas, somente encerrada com a sua morte.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Ángel Valente

(1929-2000)

 

Poeta en tiempo de miseria

 

Hablaba de prisa.

Hablaba sin oír ni ver ni hablar.

Hablaba como el que huye,

emboscado de pronto entre falsos follajes

de simpatía e irrealidad.

 

Hablaba sin puntuación y sin silencios,

intercalando en cada pausa gestos de ensayada alegría

para evitar acaso la furtiva pregunta,

la solidaridad con su pasado,

su desnuda verdad.

 

Hablaba como queriendo borrar su vida ante

um testigo incómodo,

para lo cual se rodeaba de secundarios seres

que de sus desperdicios alimentaban

una grosera vanidad.

 

Compraba así el silencio a duro precio,

la posición estable a duro precio,

el derecho a la vida a duro precio,

a duro precio el pan.

 

Metal noble tal vez que el martillo batiera

para causa más pura.

Poeta en tiempo de miseria, en tiempo de mentira

y de infidelidad.

 

O poeta angustiado

(William Hogarth: pintor inglês)

 

Poeta em tempo de miséria

 

Falava depressa.

Falava sem ouvir nem ver nem falar.

Falava como quem foge,

repentinamente emboscado entre falsas folhagens

de simpatia e irrealidade.

 

Falava sem pontuação e sem silêncios,

intercalando em cada pausa gestos de ensaiada alegria

para talvez evitar a furtiva pergunta,

a solidariedade com seu passado,

sua desnuda verdade.

 

Falava como se quisesse apagar sua vida perante uma

testemunha incômoda,

para a qual se rodeava de secundários seres

que de seus desperdícios alimentavam

uma grosseira vaidade.

 

Comprava assim o silêncio a elevado preço,

a posição estável a elevado preço,

o direito à vida a elevado preço,

a elevado preço o pão.

 

Metal nobre talvez amolgado pelo martelo

para causa mais pura.

Poeta em tempo de miséria, em tempo de mentira

e de infidelidade.

 

Referência:

 

VALENTE, José Ángel. Poeta en tiempo de miseria. In: BERGUA, José (Ed.). Las mil mejores poesias de la lengua castellana: ocho siglos de poesía española e hispanoamericana. 31. ed. Madrid, ES: Ediciones Ibéricas, 1995. p. 752. (Colección “Tesoro Literario”; n. 26)