Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Orides Fontela - Mapa

O mapa que se deduz do firmamento é apenas um dos roteiros possíveis para um cenário de distâncias colossais e mutáveis, de impercebidos ímpetos ao olhar, a percutir, de todo modo, o elemento motor presente em sua conjectural carta topográfica, qual seja, o “amor fluente e sempre vivo”, magnífica cifra desse heraclitiano concerto, onde também, insuspeita, se incorpora a humana realidade.

 

De um berçário estelar configurado por um sistema de mil incógnitas, nas regiões lindeiras da imprevisibilidade e da indeterminação, pode surgir um astro luminoso e com invulgar dinâmica. Como chegaremos a contemplá-lo nos céus? Permanecerá, como muitos, desconhecido em astronômicas distâncias, de onde não nos chegará sequer uma réstia de luz...

 

J.A.R. – H.C.

 

Orides Fontela

(1940-1998)

 

Mapa

 

Eis a carta dos céus:

as distâncias vivas

indicam apenas

roteiros

os astros não se interligam

e a distância maior

é olhar apenas.

 

A estrela

voo e luz somente

sempre nasce agora:

desconhece as irmãs

e é sem espelho.

 

Eis a carta dos céus: tudo

indeterminado e imprevisto

cria um amor fluente

e sempre vivo.

 

Eis a carta dos céus: tudo

                                  se move.

 

Em: “Alba” (1983)

 

Ícones do Perigo

(James Gleeson: artista australiano)

 

Referência:

 

FONTELA, Orides. Mapa. In: __________. Trevo: 1969-1988. São Paulo, SP: Duas Cidades, 1988. p. 169. (Coleção ‘Claro Enigma’)

domingo, 30 de julho de 2023

Anne Carson - A Justiça de Deus

Nestes versos de fina ironia – não sem motivos, o poema pertence ao poemário “Glass, Irony and God”, de 1995 –, a poetisa canadense sugere-nos que Deus, no momento mesmo em que pretendia criar a justiça, enredou-se em uma outra tarefa, digamos assim, menos nobre, qual seja, a criação de uma libélula, e parece ter ficado pasmado com o poder dos desígnios próprios do inseto, bem menos imagináveis do que poderia dar a entender a sua aparente fragilidade.

 

Se Deus é um inventor distraído ou não, se as suas criações se revestem de perfectibilidade ou não, trata-se de uma questão teológica. Mas o que Carson aparenta perfilhar é que a justiça seria um valor criado pelas sociedades humanas, não por Deus – este muito mais voltado a criar engenho e beleza, mesmo nas pequenas coisas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Anne Carson

(n. 1950)

 

God’s Justice

 

In the beginning there were days set aside for various tasks.

On the day He was to create justice

God got involved in making a dragonfly

 

and lost track of time.

It was about two inches long

with turquoise dots all down its back like Lauren Bacall.

 

God watched it bend its tiny wire elbows

as it set about cleaning the transparent case of its head.

The eye globes mounted on the case

 

rotated this way and that

as it polished every angle.

Inside the case

 

which was glassy black like the windows of a downtown bank

God could see the machinery humming

and He watched the hum

 

travel all the way down turquoise dots to the end of the tail

and breathe off as light.

Its black wings vibrated in and out.

 

Libélula

(Sherry Shipley: pintora norte-americana)

 

A Justiça de Deus

 

No princípio, havia dias reservados para as distintas tarefas.

No dia destinado a criar a justiça,

Deus se empenhou na criação de uma libélula

 

e perdeu a noção do tempo.

Tinha cerca de duas polegadas de comprimento,

com pintas turquesa por todo o dorso, como a Lauren Bacall.

 

Deus a viu dobrar seus diminutos e afilados cotovelos

enquanto se punha a limpar a envoltória transparente de

sua cabeça.

Os globos oculares, engastados na envoltória,

 

giravam de um lado a outro,

enquanto eram polidos por todos os ângulos.

No interior da envoltória,

 

negra e vítrea como as janelas de um banco no centro comercial,

Deus podia ver a maquinaria a zumbir

e Ele observou o zumbido

 

percorrer toda a trilha de pintas turquesa até o final da cauda

e exalar como luz.

Suas asas negras vibravam para dentro e para fora.

 

Referência:

 

Carson, Anne. God’s justice. In: Lehman, David; Brehm, John (Eds.). The Oxford book of american poetry. 9th print. New York, NY: Oxford University Press, 2006. p. 1069.

sábado, 29 de julho de 2023

Emily Dickinson - Em meu cérebro senti um funeral

Como se estivesse experimentando um pesadelo, ecoa na mente da voz lírica acordes de um tambor marcando a cadência de um serviço fúnebre – de seu próprio corpo físico ou, talvez melhor, de sua consciência, lucidez, faculdades de juízo –, reforçados pelo rangido produzido pelos passos, sobre um piso de tábuas, daqueles que da procissão participam, calçados com botas de chumbo.

 

“Naufragada e solitária”, toldada em sua razão, confrangida até, a falante, depois que se parte uma das tábuas do assoalho, submerge em um mundo que, a cada mergulho, finda por compreender – o lugar de seu descanso final –, não exatamente caracterizado ou descrito, mas que se pode inferior pela sequência dos versos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Emily Dickinson

(1830-1886)

 

I Felt a Funeral, in my Brain

 

I felt a funeral, in my brain,

And mourners to and fro

Kept treading – treading – till it seemed

That sense was breaking through.

 

And when they all were seated,

A Service, like a drum,

Kept beating – beating – till I thought

My mind was going numb.

 

And then I heard them lift a box

And creak across my soul

With those same boots of lead, again,

Then space began to toll,

 

As all the heavens were a bell,

And being, but an ear,

And I, and silence, some strange race,

Wrecked, solitary, here.

 

And then a plank in reason, broke,

And I dropped down, and down.

And hit a world, at every plunge,

And finished knowing then.

 

O funeral de uma jovem na Riviera

(Hugh Cameron: pintor escocês)

 

Em meu Cérebro Senti um Funeral

 

Em meu cérebro senti um funeral

Aqui e ali carpideiras caminhando –

Caminhando – até que súbito o significado

Daquilo pareceu-me desvendado.

 

E quando todos estavam sentados

Um Ofício, como um tambor,

Batendo, batendo, me fez supor

Que minha razão se havia turbado.

 

Então ouvi que um caixão era erguido

E em minha alma rangia

Com aquelas mesmas pisadas de chumbo

E que o espaço plangia,

 

Como se o firmamento todo fosse um sino

E o Altíssimo, em si, um só ouvido.

E eu, o silêncio, alguma espécie estranha,

Naufragada, solitária, aqui.

 

Em minha mente partiu-se uma tábua

E cai. Fui descendo, descendo,

Cada mergulho me levou a um mundo

E então terminei compreendendo.

 

Referência:

 

DICKINSON, Emily. I felt a funeral, in my brain / Em meu cérebro senti um funeral. Tradução de Idelma Ribeiro de Faria. In: FARIA, Idelma Ribeiro de (Tradução e ensaios). T. S. Eliot, Emily Dickinson e René Depestre: seleção. São Paulo, SP: Hucitec, 1992. Em inglês: p. 102; em português: p. 103. (Coleção ‘Literatura Estrangeira’; v. 1)

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Eduardo Guimarães - Doçura de estar só...

Há quem, como o ente lírico, se agrade em estar só, não que essa seja a melhor alternativa a estar mal-acompanhado (rs), senão porque em tais momentos o falante pode usufruir, compenetrado, dos vestígios que marcaram as horas, frescas ou remotas, de festins durante os quais – à leitura de alguns versos – se presumem saraus musicais, talvez melhor, algo como performances ao piano, em salas decoradas com requinte.

 

A bem dizer, o substrato poético é bem mais enovelante que isso, pois que se distende a uma atmosfera de sonho, em meio ao silêncio e à solidão, tudo bastante à maneira dos protótipos simbolistas: um repertório de sensações molda a textura da “torre de marfim” em que enclausurado o poeta, demarcando o perímetro de seu universo interior – plaga na qual abunda o seu pasmo de viver.

 

J.A.R. – H.C.

 

Eduardo Guimarães

(1892-1928)

 

Doçura de estar só...

 

Doçura de estar só quando a alma torce as mãos!

– Oh! doçura que tu, silêncio, unicamente

sabes dar a quem sonha e sofre em ser o Ausente,

ao lento perpassar destes instantes vãos!

 

Doçura de estar só quando alguém pensa em nós!

De amar e de evocar, pelo esplendor secreto

e pálido de uma hora em que ao Seu lábio inquieto

florescer, como um lírio estranho, a Sua voz!

 

E os lustres de cristal! E as teclas de marfim!

E os candelabros que, olvidados, se apagaram!

E a saudade, acordando as vozes que calaram!

Doçura de estar só quando finda o festim!

 

Doçura de estar só, calado e sem ninguém!

Dolência de um murmúrio em flor que a sombra exala,

sob o fulgor da noite aureolada de opala

que uma urna de astros de ouro ao seio azul sustém!

 

Doçura de estar só! Silêncio e solidão!

Ó fantasma que vem do sonho e do abandono,

dá-me que eu durma ao pé de ti do mesmo sono!

Fecha entre as tuas mãos as minhas mãos de irmão!

 

Em: “Divina quimera” (1916)

 

Homem a sós

(Uwe Wenzel: artista alemão)

 

Referência:

 

GUIMARÃES. Eduardo. Doçura de estar só... In: JUNKES, Lauro (Seleção e Prefácio). Roteiro da poesia brasileira: simbolismo. São Paulo, SP: Global, 2006. p. 140.

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Thomas Merton - Ode ao Presente Século

Merton se dirige ao século XX como se o fizesse a alguém que compendiasse os acontecimentos históricos ocorridos na primeira metade da referida centúria, vale dizer, os horrores das duas conflagrações mundiais, as quais jogaram por terra os valores de uma civilização pretensamente ciosa de suas conquistas.

 

Os atentados à razão, à logica e à verdade, os apetites de toda ordem – cobiça, pilhagem, ambições, sensualidade –, o espírito beligerante, e, ao final dos embates, um homem combalido física e moralmente: diante desse lúgubre cenário, Merton propõe ao homem – então fortuitamente remanescente – um mergulho até os estágios mais profundos da existência, para que, de lá retornando sem o pálio da prepotência, se mostre capaz de construir um mundo em harmonia com os divinos propósitos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Thomas Merton

(1915-1968)

 

Ode to the Present Century

 

What heartbeats, lisping like a lizard in a broken cistern,

Tell you, my prudent citizen, that you are nearly dead?

We heard your pains revolving on the axis of a shout:

The cops and doctors view the winter of your

knifelong blood.

 

They chart the reeling of your clockwise reason

Flying in spirals to escape philosophy,

While life’s ecliptic, drives you like an arrow

To the pit of pain.

And one by one your wars break up the arctic

Of your faultless logic,

And wills retreat upon themselves until the final seizure:

Your frozen understanding separates

And dies in floes.

 

Oh how you plot the crowflight of that cunning thief,

your appetite,

But never see what fortunes

Turn to poison in your blood.

How have you hammered all your senses into curses,

Forever twisting in your memory

The nails of sensuality and death.

Have we not seen you stand, full-armed,

And miss the heavens with the aimless rifles of your fear?

When are you going to unclench

The whited nerve of your rapacity, you cannibal:

Or draw one breath in truth and faith,

You son of Cain?

 

But if you are in love with fortunes, or with forgery,

Oh, learn to mint you golden courage

With the image of all Mercy’s Sovereign,

Turn all your hunger to humility and to forgiveness,

Forsake your deserts of centrifugal desire:

Then ride in peaceful circles to the depths of life,

And hide you from your burning noon-day devil

Where clean rock-water dropwise spends, and dies in rings.

 

In: “A Man in the Divided Sea” (1946)

 

Roda d’água do moinho

(David Lloyd Glover: artista canadense)

 

Ode ao Presente Século

 

O que os batimentos cardíacos, ceceando como um lagarto

numa cisterna avariada,

te dizem, meu prudente cidadão, que estás quase morto?

Ouvimos as tuas dores a dar voltas no eixo de um grito:

Os polícias e os médicos vislumbram o inverno com o teu

sangue no gume de uma lâmina.

 

Traçam eles o titubeio de tua razão no sentido horário,

Voando em espirais para escapar à filosofia,

Enquanto a eclíptica da vida te conduz como uma flecha

Ao abismo da dor.

E uma a uma de tuas guerras rompem o ártico

De tua impecável lógica,

E as vontades recuam sobre si mesmas até a rendição final:

Tua fria compreensão se fragmenta

E se desfaz como placas de gelo flutuantes.

 

Oh, como tramas o voo de corvo daquele astuto ladrão

– o teu apetite –,

Mas nunca vês quais fortunas

Se convertem em veneno em teu sangue.

Como tens maleado todos os teus sentidos em maldições,

Torcendo para sempre em tua memória

Os cravos da sensualidade e da morte.

Será que não te vimos de pé, armado até os dentes,

A errar o alvo nos céus com os rifles sem pontaria

do teu medo?

Quando haverás de desatar

O nervo esbranquiçado da tua rapacidade, seu canibal:

Ou inspirar um sopro de verdade e de fé,

Seu filho de Caim?

 

Mas se és enamorado da fortuna, ou da falsificação,

Aprende a cunhar tua dourada coragem

Com a imagem do todo Soberano da Misericórdia,

Converte toda a tua fome em humildade e perdão,

Abandona teus desertos de centrífugos desejos:

Então cavalga em círculos pacíficos até as profundezas

da vida,

E te esconde do teu ardente demônio do meio-dia,

Onde a água limpa da rocha se desprende em gotas

e descai em anéis.

 

Em: “Um Homem no Mar Dividido” (1946)

 

Referência:

 

MERTON, Thomas. Ode to the present century. In: __________. The collected poems of Thomas Merton. 6th print. New York, NY: New Directions, 1980. p. 121-122.