Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de março de 2019

Pierre Corneille - A Ciência Principal

Neste excerto de um poema mais longo, o grande dramaturgo francês antepõe o conhecimento da ciência e o saber que advém da instrução – com potencial para afastar o homem dos domínios da fé –, à vida de carência dos mais humildes, que, sem maiores pretensões, depositam as suas esperanças no amor de Deus.

Corneille acentua o fato de que muitos dos homens da ciência são capazes de uma larga apreensão das circunstâncias da vida, seus fundamentos, elementos motores e consequências, mas que, do mesmo modo, muito distantes estão de se conhecerem a si mesmos – deixando de atentar para o insigne aforismo do oráculo de Delfos.

J.A.R. – H.C.

Pierre Corneille
(1606-1684)
Detalhe de pintura de Charles Le Brun

La Principale Science

Le désir de savoir est naturel aux hommes;
Il naît dans leur berceau, sans mourir qu’avec eux:
Mais, ô Dieu! dont la main nous fait ce que nous sommes,
Que peut-il, sans ta crainte, avoir de fructueux?

Un paysan stupide et sans expérience,
Qui ne sait que t’aimer et n’a que de la foi,
Yaut mieux qu’un philosophe enflé de sa science,
Qui pénètre les cieux sans réfléchir sur soi.
Au grand jour du Seigneur, sera-ce un grand refuge
D’avoir connu de tout et la cause et l’effet?
Et ce qu’on aura su fléchira-t-il un juge
Qui ne regardera que ce qu’on aura fait?

A Revolta dos Pobres
(Vladimir Feoktistov: pintor russo)

A Ciência Principal

É próprio dos mortais o anseio do saber.
Existe desde o berço e só a morte apaga.
Mas, ó Deus! Cuja mão nos faz o que nós somos,
Sem teu amor, pode o saber ser proveitoso?

Um rude camponês, sem nenhuma instrução,
Que só sabe te amar e tem somente a fé,
Que um sábio vale mais, inchado de ciência,
Indagador dos céus e néscio de si mesmo.
Aos olhos do Senhor, terá grande valia
Ter tudo conhecido, as causas e os efeitos?
Pode o nosso saber aplacar um juiz
Que apenas considera o que tivermos feito?

Referência:

CORNEILLE, Pierre. La Principale Science / A Ciência Principal. Tradução de Cláudio Veiga. In: VEIGA, Cláudio (Organização e Tradução). Antologia da poesia francesa: do século IX ao século XX. Edição bilíngue. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1991. Em francês: p. 112; em português: p. 113.

sábado, 30 de março de 2019

Guilherme de Almeida - Definição de Poesia

Tudo se menciona do que poderia bem ser um quadro de natureza-morta, a saber, de uma rosa que foi colhida e colocada num vaso, para adornar um ambiente, por exemplo – e até mesmo remanesce a imagem da mão que a retirou da roseira, certamente com muito zelo, para mantê-la o mais intacta possível.

Mas o poeta afirma que a rosa não é propriamente a poesia, a despeito de toda a beleza de seus atributos: pergunta ele pela terra, esta sim, o meio de que se vale a planta para se nutrir e torna-se a graça que a todos encanta – essa terra que no caso do poeta, explicite-se, são todas as experiências por que passa em vida, boas ou más, raras ou triviais.

J.A.R. – H.C.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Definição de Poesia

Aí está a rosa,
aí está o vaso,
aí está a água,
ai está o caule,
aí está a folhagem,
aí está o espinho,
aí está a cor,
aí está o perfume,
aí está o ar,
aí está a luz,
aí está o orvalho,
aí está a mão
(até a mão que colheu).
Mas onde está a terra?
Poesia não é a rosa.

Em: “O Anjo de Sal” (1949-1951)

Flores: natureza-morta
(Pieter Wagemans: pintor belga)

Referência:

ALMEIDA, Guilherme. Definição de poesia. In: __________. Toda a poesia. v. VI. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1952. p. 249.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Howard Nemerov - A David, Sobre Sua Educação

Com sarcasmo é que Nemerov trata da mania que temos de colocar na cabeça das crianças coisas que, ao final, serão descartadas automaticamente pela memória, eis que, no mais das vezes, somente por ali passam como contingência inarredável dos exames a que se submetem, num deplorável mecanismo de fixação em que não se estimula o raciocínio, senão apenas a impor que se decorem as lições.

É a mirada crítica que se tem de repassar aos miúdos, de forma a não torná-los meros agentes passivos quando crescerem, sobre quem resulta imposta a mais resoluta alienação, constituindo massa de manobra de políticos inescrupulosos – como o que ora se assentou no poder executivo (assim, tudo em minúsculo!) deste Pindorama.

J.A.R. – H.C.

Howard Nemerov
(1920-1991)

To David, About His Education

The world is full of mostly invisible things,
And there is no way but putting the mind’s eye,
Or its nose, in a book, to find them out,
Things like the square root of Everest
Or how many times Byron goes into Texas,
Or whether the law of the excluded middle
Applies west of the Rockies. For these
And the like reasons, you have to go to school
And study books and listen to what you are told,
And sometimes try to remember. Though I don’t know
What you will do with the mean annual rainfall
On Plato’s Republic, or the calorie content
Of the Diet of Worms, such things are said to be
Good for you, and you will have to learn them
In order to become one of the grown-ups
Who sees invisible things neither steadily nor whole,
But keeps gravely the grand confusion of the world
Under his hat, which is where it belongs,
And teaches small children to do this in their turn.

A educação de um príncipe
(Eduardo Zamacois y Zabala: pintor espanhol)

A David, Sobre Sua Educação

O mundo, em grande medida, está cheio de coisas invisíveis,
E não há mais como colocar os olhos da mente,
Ou o seu nariz, em um livro, para encontrá-las:
Coisas como a raiz quadrada do Everest
Ou quantas vezes Byron encaminha-se ao Texas,
Ou se, porventura, a lei do terceiro excluído
Aplica-se a oeste das Montanhas Rochosas. Por essas
Razões ou outras que tais, você tem que ir à escola
E estudar as lições dos livros, ficar atento às preleções
E, algumas vezes, tentar recordá-las. Embora eu desconheça
O que você fará com a média anual das chuvas
Que caem sobre a República de Platão, ou o conteúdo calórico
Da Dieta de Worms, costuma-se dizer que tais coisas são
Recomendáveis que se conheça, e você terá que aprendê-las
Para converter-se em um dos adultos que
Veem coisas invisíveis, não com frequência nem por inteiro.
Porém mantenha solenemente a grande confusão do mundo
Sob o seu chapéu, que é onde ela tem lugar,
E ensine as crianças pequenas, por sua vez, a assim procederem.

Referência:

NEMEROV, Howard. To David, about his education. In: KEILLOR, Garrison (Selection and Introduction). Good poems for hard times. New York, NY: Penguin Books, 2006. p. 40.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Eugenio Montale - Felicidade alcançada

Com o objetivo de descrever a fugacidade e a inconstância da felicidade humana, Montale emprega algumas metáforas eficazes: marcha sobre uma lâmina afiada, uma chama débil com potencial para apagar-se ao primeiro sopro de vento, uma massa de gelo que se estala sob a pressão dos pés.

A felicidade, ante tal perspectiva, nunca é um estado apreendido definitivamente, ainda que seja, eventualmente, capaz de fazer-nos levantar com um ar luminoso pela manhã, pois, no geral, o que impera é a dor da existência, como a de uma criança que deixa escapar a bola para um ponto mais distante, oportunidade em que se descobre pouco hábil para capturá-la novamente.

J.A.R. – H.C.

Eugenio Montale
(1896-1981)

Felicità raggiunta

Felicità raggiunta, si cammina
per te sul fil di lama.
Agli occhi sei barlume che vacilla,
al piede, teso ghiaccio che s’incrina;
e dunque non ti tocchi chi più t’ama.

Se giungi sulle anime invase
di tristezza e le schiari, il tuo mattino
è dolce e turbatore come i nidi delle cimase.
Ma nulla paga il pianto del bambino
a cui fugge il pallone tra le case.

Crianças
(Vladimir Volegov: pintor russo)

Felicidade alcançada

Felicidade alcançada, de quem
anda por ti em lâmina acerada.
Aos olhos és vislumbre que vacila,
ao passo, gelo tenso que estala;
e não te toque pois o que mais amor te tem.

Se vens sobre as almas invadidas
de tristeza e as aclaras, teu ar matutino
é doce e perturbador como os ninhos dos beirais.
Mas nada repara choro de menino
a que escapa uma bola pelos quintais.

Referência:

MONTALE, Eugenio. Felicità raggiunta / Felicidade alcançada. Tradução de Renato Xavier. In: __________. Ossos de sépia: 1920-1927. Tradução prefácio e notas de Renato Xavier. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011. Em italiano: p. 86; em português: p. 87. (Edição comemorativa dos 25 anos da Companhia das Letras)

quarta-feira, 27 de março de 2019

Raul Bopp - Quadro rural

Embora não se tenha o momento exato em que Bopp redigiu este poema – talvez na década de 60 –, o fato é que o meio rural do Brasil, desde então, alterou-se bastante, com a difusão febril, em grandes linhas, das plantações de soja e da criação de gado.

Mesmo o solo amazônico – objeto de muitos dos poemas do escritor gaúcho –, nos dias que correm, já sofre o impacto da devastação com tais objetivos, em especial a região do norte de Mato-Grosso e a banda oriental do Pará.

Ainda assim, há inúmeros pontos da vasta floresta tropical onde a presença do homem é sobremodo esparsa: lugares desassistidos de estradas, energia elétrica ou de água encanada, cujas paragens jamais experimentaram o que quer que possa, mesmo remotamente, ser chamado de civilização, ou que, por hipótese, tenham sido elas destinatárias de ação governamental.

J.A.R. – H.C.

Raul Bopp
(1898-1984)

Quadro rural

Longe no interior sente-se o drama silencioso do homem.
O horizonte traça os limites do seu mundo.
O espaço físico se estira ante os seus olhos cansados.
As distâncias o abatem.

Passam os tempos lentos...
A fisionomia rural continua a mesma com terras de baixo rendimento.
A saúva tomou conta das lavouras.
Populações resignadas se acomodam num plano do deixa-estar.

Paisagem deprimida
com uma linha de mato mutilada a machado.
João Candango subnutrido e apático senta-se à porta do rancho.
Pesa o silêncio entre os tições apagados.

A estrada se desenrola entre morros acocorados.
Sobem cargueiros lentos pelos aclives da serra.

Aparece lá embaixo um povoado desanimado
com uma cruz de madeira negra na estrada
para espantar o diabo.

Pasta na rua um cavalo coxo.

O vento varre as ladeiras
com os seus velhos muros descascados.
Mulher de sexo solto
foi morar na rua de trás.

Em: “Parapoemas: variações em torno de alguns temas brasileiros”

Paisagem rural
(Rosemara Cruz: pintora brasileira)

Referência:

BOPP, Raul. Quadro rural. In: __________. Poesia completa. Organização, preparação do texto e comentários de Augusto Massi. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio; São Paulo, SP: Edusp, 1998. p. 311.

terça-feira, 26 de março de 2019

Alejandra Pizarnik - Em honra de uma perda

De uma obra póstuma, lançada em 1982, extraí este poema trágico, com prenúncio de dilaceramento do espírito, ostensivamente envolto pela penumbra da morte – o que, de fato, veio a ocorrer com o falecimento da poetisa, mediante a ingestão de uma dose excessiva de soníferos.

Independentemente do que se venha a associar ao ocorrido com a autora, há suficiente beleza na conversão em linguagem desse seu estado despedaçado, a revelar-se em linhas com tons crepusculares e fragmentados, a sobreporem-se, como ela mesma preceitua, sobre o silêncio lancinante.

J.A.R. – H.C.

Alejandra Pizarnik
(1936-1972)

En honor de una pérdida

La para siempre seguridad de estar de más en el lugar en
donde los otros respiran. De mí debo decir que estoy
impaciente porque se me dé un desenlace menos trágico que
el silencio. Feroz alegría cuando encuentro una imagen que
me alude. Desde mi respiración desoladora yo digo: que
haya lenguaje en donde tiene que haber silencio.
Alguien no se enuncia. Alguien no puede asistirse. Y tú no
quisiste reconocerme cuando te dije lo que había en mí que
eras tú. Ha tornado el viejo terror: haber hablado nada con
nadie.
El dorado día no es para mí. Penumbra del cuerpo fascinado
por su deseo de morir. Si me amas lo sabré aunque no
viva. Y yo me digo: Vende tu luz extraña, tu cerco inverosímil.
Un fuego en el país no visto. Imágenes de candor cercano.
Vende tu luz, el heroísmo de tus días futuros. La luz es un
excedente de demasiadas cosas demasiado lejanas.
En extrañas cosas moro.

De: “Textos de sombra y últimos poemas” (1982)

Pôr do sol sobre as ondas
(Mauritz de Haas: pintor holandês-americano)

Em honra de uma perda

A segurança de para sempre ser redundante no lugar
onde os outros respiram. De minha parte devo dizer que estou
impaciente, porque à volta de um desenlace menos trágico que
o silêncio. Feroz alegria quando encontro uma imagem que me
faz alusão. A começar por minha respiração desoladora, digo:
que haja linguagem onde tem que haver silêncio.
Alguém não se enuncia. Alguém não pode ajudar-se. E tu não
quiseste me reconhecer quanto te disse o que havia em mim que
eras tu. O velho terror retornou: de não haver falado nada com
ninguém.
O dia dourado não é para mim. Penumbra de um corpo
fascinado por seu desejo de morrer. Se me amas sabê-lo-ei ainda que
não viva. E digo-me: Vende tua luz estranha, teu halo inverossímil.
Um fogo não visto no país. Imagens de candor contíguo.
Vende tua luz, o heroísmo de teus dias futuros. A luz é um
excedente de demasiadas coisas por demais distantes.
Em coisas estranhas eu moro.

De: “Textos de sombra e último poemas” (1982)

Referência:

PIKARNIK, Alejandra. En honor de una perdida.In: CANAL, Fredo Arias de la. (Ed.). Antología de la poesía cósmica y tanática de Alejandra Pizarnik. México, D.F.: Frente de Afirmación Hispanista, A. C., 2003. p. 6. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 mar. 2019.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Zbigniew Herbert - Trenodia de Fortinbras

Em autêntica ode elegíaca, ou seja, num cântico fúnebre e lamentoso – “trenodia” significa exatamente isso –, Herbert põe as palavras a sair da boca de Fortinbras, príncipe herdeiro da Noruega e personagem da tragédia shakespeariana “Hamlet”, a quem concede um funeral de soldado, eis que lhe parece digno de tais honrarias.

Sobressai, no poema, o seu teor infenso a qualquer ideia de submissão ou de resignação a estados opressivos, apontando para a necessidade de se abraçar a bandeira da liberdade, com o que se sobreleva o teor político da peça – o qual, no mais das vezes, pouco vem à tona em suas interpretações –, talvez em razão do interesse de Herbert em levá-la a adaptar-se ao estado de sujeição da sua Polônia natal, em fins dos anos 60, antes, portanto, da queda da denominada “Cortina de Ferro”, duas décadas depois.

O castelo de Elsinore passou a simbolizar um lugar onde um entrelaçamento de vontade e destino foi violentamente definido e uma história identificada como tragédia. Na interpretação moderna, coloca-se a ênfase sobre o aspecto político da situação de Hamlet, como um homem cercado de espiões e fingindo loucura para autoproteção. Mas Hamlet perde o jogo, assim como todo mundo. Em vez de heroicos confrontos de vontade, um status quo provisório e remendado. O poema não pronuncia um juízo claro acerca dos fatos (MILOSZ, 1998, p. 301).

J.A.R. – H.C.

Zbigniew Herbert
(1924-1998)

Tren Fortynbrasa

Dla M. C.

Teraz kiedy zostaliśmy sami możemy porozmawiać książę jak
mężczyzna z mężczyzną
chociaż leżysz na schodach i widzisz tyle co martwa mrówka
to znaczy czarne słońce o złamanych promieniach
Nigdy nie mogłem myśleć o twoich dłoniach bez uśmiechu
i teraz kiedy leżą na kamieniu jak strącone gniazda
są tak samo bezbronne jak przedtem To jest właśnie koniec
Ręce leżą osobno Szpada leży osobno Osobno głowa
i nogi rycerza w miękkich pantoflach

Pogrzeb mieć będziesz żołnierski chociaż nie byłeś żołnierzem
jest to jedyny rytuał na jakim trochę się znam
Nie będzie gromnic i śpiewu będą lonty i huk
kir wleczony po bruku hełmy podkute buty konie artyleryjskie
werbel werbel wiem nic pięknego
to będą moje manewry przed objęciem władzy
trzeba wziąć miasto za gardło i wstrząsnąć nim trochę

Tak czy owak musiałeś zginąć Hamlecie nie byłeś do życia
wierzyłeś w kryształowe pojęcia a nie glinę ludzką
żyłeś ciągłymi skurczami jak we śnie łowiłeś chimery
łapczywie gryzłeś powietrze i natychmiast wymiotowałeś
nie umiałeś żadnej ludzkiej rzeczy nawet oddychać nie umiałeś

Teraz masz spokój Hamlecie zrobiłeś co do ciebie należało
i masz spokój Reszta nie jest milczeniem ale należy do mnie
wybrałeś część łatwiejszą efektowny sztych
lecz czymże jest śmierć bohaterska wobec wiecznego czuwania
z zimnym jabłkiem w dłoni na wysokim krześle
z widokiem na mrowisko i tarczę zegara

Żegnaj książę czeka na mnie projekt kanalizacji
i dekret w sprawie prostytutek i żebraków
muszę także obmyślić lepszy system więzień
gdyż jak zauważyłeś słusznie Dania jest więzieniem
Odchodzę do moich spraw Dziś w nocy urodzi się
gwiazda Hamlet Nigdy się nie spotkamy
to co po mnie zostanie nie będzie przedmiotem tragedii

Ani nam witać się ani żegnać żyjemy na archipelagach
a ta woda te słowa cóż mogą cóż mogą książę

Hamlet: Ato IV, Cena V
(Benjamin West: pintor anglo-americano)

Trenodia de Fortinbras

Para Czesław Miłosz

Agora a sós podemos príncipe falar de homem para homem
se bem que jazas nos degraus e vejas quanto uma formiga
morta vê
ou seja um negro sol com raios rotos
Jamais pude sem rir pensar em tuas mãos
que feito ninhos que caíram jazem Sobre a pedra agora
inermes como outrora O fim não passa disso
As mãos jazendo aqui A espada ali A cabeça acolá
e os pés do cavaleiro em chinelas macias

Verás um funeral de soldado sem nunca ter sido um soldado
é o único ritual que mal e mal conheço
Não há de haver círios nem cantos só pavios e estrondos
crepe arrastado sobre o pavimento elmos botas
ferradas cavalos que puxam canhões tambor tambor
eu bem o sei nada de belo
tais hão de ser minhas manobras antes de apossar-me do poder
convém pegar pelo pescoço esta cidade e sacudi-la um pouco

Perecerias Hamlet cedo ou tarde inapto que eras para a vida
acreditavas em ideias de cristal em vez do barro humano
caçavas entre espasmos sempre e como em sonhos mil quimeras

abocanhavas como um lobo o ar só para vomitá-lo
não sabias fazer nada de humano nem ao menos respirar

Agora estás em paz Hamlet cumpriste o teu papel
e estás em paz Não é silêncio o resto mas pertence a mim
a parte que escolheste era a mais fácil uma esplêndida estocada
mas o que a morte heroica é frente à eterna vigilância
do alto de uma cadeira um pomo frio numa mão
um formigueiro sob os olhos e o quadrante do relógio

Adeus príncipe aguarda-me um projeto para esgotos
e algum decreto sobre prostitutas e mendigos
Preciso aperfeiçoar além disto o sistema de prisões
pois como bem disseste a Dinamarca é uma prisão
Prossigo com meus afazeres Hoje à noite nasce
uma estrela chamada Hamlet Nunca nos reencontraremos
o que eu hei de legar não será tema de tragédias

Nem cabe nos saudarmos despedirmo-nos nós habitamos
arquipélagos
e essa água estas palavras entre nós de que de que nos
valem príncipe.

Referências:

Em Polonês

HERBERT, Zbigniew. Tren Fortynbrasa. Disponível neste endereço. Acesso em: 20 mar. 2019.

Em Português

HERBERT, Zbigniew. Trenodia de Fortinbras. Tradução de Nelson Ascher. In: ASCHER, Nelson (Tradução e Organização). Poesia alheia: 124 poemas traduzidos. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. p. 351-352. (Coleção “Lazuli”)

MILOSZ, Czeslaw (Ed.). A book of luminous things: an international anthology of poetry. 1st. ed. New York, NY: Houghton Mifflin Harcourt, 1998.

domingo, 24 de março de 2019

Moacyr Félix - O Poeta

O campo teórico para tentar se definir ou conceituar o que seja o poeta é vasto, diria até sem limites, muito embora alguns juízos tenham ficado para a posteridade, como aquele do lusitano Fernando Pessoa, para quem o vate é um fingidor – finge que é dor a dor que deveras sente!

Para Moacyr Félix, o poeta é um perdedor, uma “besta inglória”, muito distante, portanto, daquela imagem exacerbadamente valorizada pelo francês Victor Hugo, que nele vê a presença de um vasto mundo confinado num homem. Quem terá razão? Qual o “colírio alucinógeno” capaz de reduzir a um denominador comum tudo aquilo que já se disse sobre esse espírito atormentado por sensações avassaladoras?

J.A.R. – H.C.

Moacyr Félix
(1926-2005)

O Poeta

O poeta se perdia em símbolos.
O poeta se perdia em signos.
O poeta se perdia em palavras.
O poeta se perdia nele próprio
sem que espelho algum lhe trouxesse
o que dele assim ex-fato se perdia.
O poeta foi sempre um perdedor
com a tola ambição de achar-se um dia
sem a necessidade de fazer poemas
sobre a existência que lhe escapulia.

O poeta é uma besta inglória
entre a beleza de uma laranja
e o riso de todas as árvores mortas.

Em: “Em nome da vida” (1981)

Homem com um gato
(Cecilia Beaux: pintora norte-americana)

Referência:

FÉLIX, Moacyr. O poeta. In: Antologia poética. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio, 1993. p. 24.