Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 31 de março de 2024

José Lezama Lima - Sobre uma gravura de alquimia chinesa

Detive-me aqui a especular que o poeta cubano talvez desejasse pôr em relevo, mediante estas descritivas linhas, as distinções entre o alquimista do Ocidente – que investiga, sobretudo, formas de se produzir ouro a partir da transmutação de outros metais –, e aquele que, no Oriente, na China em particular, empenha-se mais em obter elixires, com o fim último de se tornar imortal, ou, pelo menos, granjear saúde, longevidade e sabedoria.

 

Nos dias que correm, pode-se tomar a alquimia como uma espécie de metáfora para o processo de autorrealização e de renascimento anímico de cada ser humano, levando-o a um nível superior de consciência e de refinamento do espírito, ou seja, autêntica ascese de um plano tão apenas material a um outro mais elevado, em união com o seu princípio divino.

 

J.A.R. – H.C.

 

José Lezama Lima

(1910-1976)

 

Sobre un grabado de alquimia china

 

Debajo de la mesa

se ven como tres puertas

de pequeños hornos,

donde se ven piedras y varas ardiendo,

por donde asoma el enano

que masca semillas para el sueño.

Encima de la mesa

se ven tres cojines grises y azules,

en dos de ellos hay como figuras geométricas

hechas con huevos irrompibles.

Al lado un jarrón sin ornamento.

Pedazos de leña por el suelo.

Un hombre curvado con una balanza

pesa una cesta de almendras.

La varilla de ébano

alcanza de inmediato el fiel.

El hombre que vende

teme a los tres pequeños hornos

que se esconden debajo de la mesa.

Por allí deben salir

las figuras esperadas

que vendrán cuando el pesador

logre el centro de la canasta.

A su derecha el hombre que contempla

absorto al pesador,

juega con unos pájaros.

 

Gravura chinesa

(Autoria desconhecida)

 

Sobre uma gravura de alquimia chinesa

 

Debaixo da mesa

há três portas

de pequenos fornos,

onde se veem pedras e varetas em chamas,

por onde assoma o anão

a mastigar sementes soníferas.

Sobre a mesa

encontram-se três almofadas cinzentas e azuis,

duas das quais com figuras geométricas

compostas por ovos inquebráveis.

Ao lado, um jarro sem adornos.

Pedaços de lenha pelo chão.

Um homem curvado sobre uma balança

pesa uma cesta de amêndoas.

O ponteiro de ébano

atinge de imediato o fiel.

O homem que vende

inquieta-se com os três pequenos fornos

escondidos debaixo da mesa.

Por ali devem sair

as esperadas figuras que hão de surgir

assim que o pesador

conseguir equilibrar a canastra.

À sua direita, o homem que contempla

absorto o pesador,

brinca com alguns pássaros.

 

Referência:

 

LIMA, José Lezama. Sobre un grabado de alquimia china. In: __________. José Lezama Lima. Selección y nota introductoria de David Huerta. México, D.F.: UNAM (Coordinación de Difusión Cultural - Dirección de Literatura), 2007. p. 29. Disponível neste endereço. Acesso em: 28 mar. 2024.

 

sábado, 30 de março de 2024

Robert Frost - O Telefone

O falante, neste poema, aparentemente se depara com uma flor em forma de telefone e põe-se a imaginar num diálogo telepático com a amante: falando a partir de outra flor sobre o peitoril de uma janela, ela lhe pergunta sobre o que o falante teria escutado, obtendo como resposta o argumento de que ela o teria chamado. A amante, então, comenta que até pode ter pensado nisso, mas não expressou verbalmente tal desejo. Seja como for, o falante, respondendo ao hipotético apelo, foi ter com a amante.

 

A rigor, o poema tem uma dicção aberta e o leitor pode levantar suposições o quanto possa, no que diz respeito ao diálogo em apreço. O certo, nada obstante, é que o seu título não pode ser apreendido literalmente pela materialidade física de um aparelho telefônico, senão metaforicamente, com o sentido da mantença de um estado mental conectado a uma voz que se escuta a distância.

 

J.A.R. – H.C.

 

Robert Frost

(1874-1963)

 

The Telephone

 

“When I was just as far as I could walk

From here to-day,

There was an hour

All still

When leaning with my head against a flower

I heard you talk.

Don’t say I didn’t, for I heard you say –

You spoke from that flower on the window sill –

Do you remember what it was you said?”

 

“First tell me what it was you thought you heard.”

 

“Having found the flower and driven a bee away,

I leaned my head,

And holding by the stalk,

I listened and I thought I caught the word –

What was it? Did you call me by my name?

Or did you say –

Someone said ‘Come’ – I heard it as I bowed.”

 

“I may have thought as much, but not aloud.”

 

“Well, so I came.”

 

Eugène Manet na Ilha de Wight

(Berthe Morisot: pintora francesa)

 

O Telefone

 

“E quando me afastei o quanto pude

Hoje daqui,

Houve uma hora

Tranquila,

Em que, ao me inclinar sobre uma flor,

Te ouvi falar.

Não me digas que não, porque te ouvi dizer...

Falaste daquela flor no parapeito da janela –

Lembras-te do que disseste?”

 

“Primeiro dize-me o que julgaste ter ouvido.”

 

“Tendo encontrado a flor e afugentado uma abelha,

Inclinei a cabeça

E segurando a haste

Escutei e julguei ter captado a palavra –

Qual era? Chamaste-me pelo nome?

Ou disseste...

Alguém disse ‘Vem’ – ouvi ao debruçar-me.”

 

“Talvez o tenha pensado, mas não falei.”

 

“Pois bem, então eu vim.”

 

Referência:

 

FROST, Robert. The telephone / O telefone. Tradução de Willy Lewin. In: MARQUES, Oswaldino (Organização e Prólogo). O livro de ouro da poesia dos Estados Unidos: coletânea de poemas norte-americanos. Edição bilíngue: inglês x português. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro & Tecnoprint, 1987. Em inglês: p. 122; em português: p. 123. (Coleção ‘Universidade de Bolso’)

sexta-feira, 29 de março de 2024

Alphonsus de Guimaraens - Na Sexta-feira Santa o silêncio profundo

Numa atmosfera de sonho, o falante descreve o que se passa numa sexta-feira santa como hoje, tudo a evocar a presença da morte, relembrada por um “dobre de finados” que se perde ao largo, em meio ao alheamento daqueles a quem se dirige, agora submetidos à nova lei do quotidiano contemporâneo secularizado.

 

Nos versos, assoma a sugestiva pátina do simbolismo, com seus matizes religiosos: se as batidas do relógio na torre já não estabelecem comunicação entre o céu e a terra, conclui o poeta que tal se deve ao fato de que “a ária da platidude” passou a embalar “os corações do mundo”, e uma pulsão de morte, espelhada em sua estática pressagiadora, não permite vislumbrar senão um “espaço infindo” coberto de “cruzes”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Alphonsus de Guimaraens

(1870-1921)

 

Na Sexta-Feira Santa o silêncio profundo

 

Na Sexta-Feira Santa o silêncio profundo

Do céu me envolve todo em mágoa funerária.

Nem o mais leve sopro alenta os ares: a ária

Da platitude embala os corações no mundo.

 

Olho para o infinito e vejo, no fecundo

Lar dos astros, surgir a lua imaginária:

Uma onda quieta, e após, outra vaga mortuária

– Nuvens mortas – do céu vêm divagar no fundo...

 

Pela estrada para onde, ó sonho, me conduzes,

Vejo marchando além silenciosos Cruzados,

E todo o espaço infindo a cobrir-se de cruzes...

 

Nesse dia o relógio anda morto na torre,

Pois cada hora que passa é um dobre de finados,

Que se não ouve e que se perde e que além morre.

 

Paisagem com campanário de igreja

(Émile J. Grumieaux: pintor belga)

 

Referência:

 

GUIMARAENS, Alphonsus. Na sexta-feira santa o silêncio profundo. In: __________. Poesia completa: em um volume. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho, com a colaboração de Alexei Bueno e Afonso Henriques Neto. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguillar, 2001. p. 401. (‘Biblioteca luso-brasileira’; Série brasileira)

quinta-feira, 28 de março de 2024

Carlos Germán Belli - Robô sublunar

Belli, nestas estâncias predicatórias ao robô sublunar – com versos sem rimas, embora metrificados alternadamente com seis e dez sílabas poéticas –, esmera-se em dar curso, em determinadas linhas, a construções hiperbáticas, como se tencionasse deslocar o leitor de sua zona de conforto cognitiva.

 

Mantendo o arranjo sintático da redação original, verti o poema ao português sem tornar direto o discurso, para que o internauta perceba o quanto a ordem em que dispostas as palavras suscita perplexidades em nossas mentes, demandando maior esforço de assimilação, quase como se desconhecêssemos as formas de construção verbal assemelhadas dos dois idiomas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Germán Belli

(n. 1927)

 

Robot sublunar

 

¡Oh robot sublunar!

por entre cuya fúlgida cabeza

la diosa Cibernética

el pleno abecé humano puso oculto,

cual indeleble sello,

en las craneales arcas para siempre;

 

envídiolo yo cuánto

porque en el escolar malsano cepo

por suerte se vio nunca

un buen rato de su florida edad,

ni su cráneo fue polvo

en los morteros de la ilustración;

 

que tal robot dichoso

las gordas letras persiguió jamás,

y antes bien engranaron

en las dentadas ruedas de su testa,

no más al concebirlo

el óvulo fabril de la mecánica;

 

y más lo envidio yo,

porque a sí mismo bástase seguro,

y ágil cual deportista,

de acá para acullá expedito vive,

sin el sanguíneo riego

del ayer, hoy, mañana ineludible.

 

Robô pintando um autorretrato

(Johan Scherft: artista holandês)

 

Robô sublunar

 

Ó robô sublunar!

por entre cuja fúlgida cabeça

a deusa Cibernética

o completo alfabeto humano pôs oculto,

qual indelével selo,

nas cranianas calotas para sempre;

 

invejo-o eu quanto

porque no escolar malsão cepo

por sorte se viu nunca

um bom lapso de sua florida idade,

nem seu crânio foi pólvora

nos morteiros da ilustração;

 

que tal robô ditoso

as gordas letras perseguiu jamais,

longe disso, engrenaram

nas dentadas rodas de sua testa,

não mais ao concebê-lo

o óvulo fabril da mecânica;

 

e mais o invejo eu,

porque a si mesmo basta-se seguro,

e ágil qual desportista,

daqui para ali expedito vive,

sem a sanguínea irrigação

do ontem, do hoje, do amanhã ineludível.

 

Nota:

 

A seguir, rápidas paráfrases das estrofes do poema, com o objetivo de tornar mais imediata a assimilação do quanto por meio delas se exprime:

 

I. Ó robô sublunar, em cuja cabeça brilhante a deusa Cibernética ocultou para sempre o alfabeto humano completo, como um selo inapagável, em suas calotas cranianas.

 

II. Quanto eu o invejo, porque, na mórbida clausura escolar, por sorte nunca se o viu na flor da idade por um bom lapso de tempo, tampouco se testemunhou o seu crânio virar pólvora nos morteiros da ilustração.

 

III. As gordas letras jamais foram perseguidas por tal robô ditoso, longe disso, ao deixarem de concebê-lo como o óvulo fabril da mecânica, acabaram elas por se engrenar nas rodas dentadas de sua testa.

 

IV. E mais ainda eu o invejo, porque é seguro de si e ágil como um atleta, movendo-se com iniciativa daqui para ali, sem a irrigação sanguínea do ontem, do hoje, do inevitável amanhã.

 

Referência:

 

BELLI, Carlos Germán. Robot sublunar. In: AA.VV. Carlos Germán Belli: un punto incandescente. 1. ed. dig. Lima, PE: Vallejo & Co., set. 2021. p 207.