Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Eduardo Guimaraens - Prece da Última Noite do Ano

A fazer menção ao primeiro grande conflito de maiores dimensões – a Primeira Guerra Mundial, ocorrida entre 1914-1918 –, o poeta gaúcho tece uma grande súplica pela paz, exatamente quando o embate ainda estava longe de terminar, no derradeiro dia do ano de 1916.

E aqui se revela o potencial que tem a guerra para expressar a insanidade humana: com toda a intencionalidade possível, os Estados se armam para amparar uma visão separatista, permeada pela inflexão estanque do “nós” contra os “outros”, na qual a pretensa defesa da liberdade e da democracia busca ocultar a verdade mais nítida da intervenção, da violência e do militarismo, afastando-nos, é claro, do ideal de sabedoria, justiça e convivência pacífica.

J.A.R. – H.C.

Eduardo Guimaraens
(1892-1928)

Prece da Última Noite do Ano

Última noite do ano.
Silêncio. Vagamente,
há, sobre o mar e a terra,
como o sussurro humano
de um imortal desejo
que, à luz dos astros, erra.

Última noite do ano!

Por que este anseio ardente
que chora? Vagamente
foge, pelo ar, o adejo
de um anjo de extermínio.

Sangra o rancor humano.
Vai pelo mundo a guerra!

Na sombra sem aurora
do trágico domínio,
impera, só, divina,
sinistra e fria, a Morte!
Nem ouve o amor que implora
misericórdia! E o grito
dos que não doma a sorte!
E o orgulho que se inclina!
E o desespero insano
que em vão, as mãos levanta
para o álgido infinito!

Última noite do ano...

Há névoa. Um sino canta.
E, trêmulo, anuncia
que outro ano surge.
Desce,
sobre a manhã que dorme,
um límpido, sereno
repouso. E, pouco a pouco,
desse silêncio enorme,
como se fora um treno
que aumenta, pouco a pouco,
para o esplendor eterno
sobe uma imensa prece.

Ouve-a, Senhor! É dela
que todo o azul palpita,
esplende e se constela!
Ouve-a, Senhor! Do inferno
secreto e da infinita
angústia em que a alma triste
soluça, a voz floresce
e, como um lírio imenso,
vai incensar do aroma
da alma, do íntimo incenso
puro, a mansão celeste
onde o teu trono existe!

Ouve-a, que pede
a tua misericórdia! Toda!
Imensa, inexprimível!
A cada pranto, um lenço!
Sobre a nudez, a veste
cristã! E, sobre o mundo
a paz!
Paz sobre Roma,
sobre Berlim e o mundo!

Ouve-a, Senhor! E, a esta hora,
à luz do céu profundo,
faze melhor o lábio
que o espírito interpreta.
– Sinta a Verdade o sábio!
E a Beleza o poeta!
Ouve a oração que chora,
Senhor! Que, a bênção desça
sobre este grande anseio!
E seja o humilde amado
e belo! E alegre o triste!
Feliz, quem o mereça!

Que a prece inumerável
suba ao teu vasto seio!
Ouve-a, Senhor! É o canto
do mundo prosternado
e pálido de espanto!
Ouve-a que se insinua
pela alma inexprimível
dos seres que criaste,
das coisas que criaste
sobre este chão vazio;
e que, sem pausa, bela
e grande, sobe, voa,
esplende e se constela
e, pelo céu, ecoa!
E alegra a terra toda
e o grande mar sombrio!
E acalma a febre em chama!
E aclara o abismo escuro!
E a sombra do Futuro!

E o sonho de quem ama!

(1916)
Em: “Rimas do Reino dos Céus”

Manhã em Janeiro
(Gerald Gardiner: pintor inglês)

Referência:

GUIMARAENS, Eduardo. Prece da última noite do ano. In: __________. A divina quimera. Edição definitiva organizada e prefaciada por Mansueto Bernardi. Porto Alegre, RS: Livraria Globo, 1944. p. 395-397.


domingo, 30 de dezembro de 2018

John Clare - O Ano Velho

Bem próximo à virada do ano, temos o costume de nos desfazer de coisas que já não fazem mais sentido para nós: papéis velhos, roupas por demais (ou jamais) usadas, coisas que, de uma forma ou de outra, entulham os nossos lares e que poderiam ser mais bem aproveitadas por outras pessoas.

E de um ano que se adjetiva como passado, Clare nos alerta para o fato de que é tempo que não volta mais, para ser novamente experimentado, muito embora os seus efeitos sejam palpáveis no ambiente à volta, haja vista que temos meios para constatar as mudanças provocadas em nossas vidas – quer sobre o que nos pertence quer sobre nossos corpos.

J.A.R. – H.C.

John Clare
(1793-1864)
Retrato de William Hilton

The Old Year

The Old Year’s gone away
To nothingness and night:
We cannot find him all the day
Nor hear him in the night:
He left no footstep, mark or place
In either shade or sun:
The last year he’d a neighbour’s face,
In this he’s known by none.

All nothing everywhere:
Mists we on mornings see
Have more of substance when they’re here
And more of form than he.
He was a friend by every fire,
In every cot and hall –
A guest to every heart’s desire,
And now he’s nought at all.

Old papers thrown away,
Old garments cast aside,
The talk of yesterday,
Are things identified;
But time once torn away
No voices can recall:
The eve of New Year’s Day
Left the Old Year lost to all.

(1845)

Lareira de Natal
(John Sloane: pintor norte-americano)


O Ano Velho

O Ano Velho dispersou-se
Nas trevas e na não existência:
Não deparamos com ele todo o dia,
Tampouco o escutamos à noite:
Não deixou rastro, marca ou lugar
Nalgum sol ou penumbra:
O ano findo tinha a cara de um vizinho,
Motivo por que ninguém o conhece.

Nada há de seu em parte alguma:
As brumas que vemos nas manhãs
Exibem mais substância quando aqui estão
E mais forma do que ele.
Era companhia à volta de cada lareira,
Em qualquer choupana ou salão –
Um hóspede de todo desejo do coração,
E agora não é nada em absoluto.

Papéis velhos jogados fora,
Roupas gastas deixadas de lado,
A conversa de ontem,
São coisas passíveis de comprovar;
Porém do tempo, uma vez arrebatado,
Não há vozes capazes de recordar:
A véspera do Dia de Ano Novo
Fez do Ano Velho uma perda para todos.

(1845)

Referência:

CLARE, John. The old year. In: __________. Poems: chiefly from manuscript. London, EN: Richard Cobden-Sanderson, 1920. p. 202.


sábado, 29 de dezembro de 2018

Ella Wheeler Wilcox - O Ano

O ano tem as suas alegrias e as suas tristezas. Novos seres que vêm habitar a terra, outros tantos que partem. Isso é tudo a que se resume a passagem dos dias: rir, chorar, temer, aguardar. E quando chega o momento da virada do ano, nosso espírito ganha certo alento, com esperanças de amor, prosperidade e saúde – muito embora não se vivencie mais do que um simples dia no calendário.

Eis mais ou menos o sentido deste curto e rítmico poema de Wilcox, com meia dúzia de dísticos rimados, aparentemente simples, mas que desafia uma récita apressada no original. E, para quem já está em grau mais ou menos avançado de dislexia, pode ser que venha a sufocar com as iguarias do Réveillon!

J.A.R. – H.C.

Ella Wheeler Wilcox

(1850-1919)

The Year

What can be said in New Year rhymes,
That’s not been said a thousand times?

The new years come, the old years go,
We know we dream, we dream we know.

We rise up laughing with the light,
We lie down weeping with the night.

We hug the world until it stings,
We curse it then and sigh for wings.

We live, we love, we woo, we wed,
We wreathe our brides, we sheet our dead.

We laugh, we weep, we hope, we fear,
And that’s the burden of the year.

Noite do final de ano:
praça do teatro em Moscou
(Alexey Shalaev: pintor russo)

O Ano

O que se pode dizer em rimas de Ano Novo,
Isso já não se disse antes outras tantas vezes?

Chegam os anos novos, os velhos anos se vão,
Estamos cônscios do sonho, sonhamos cônscios.

Levantamo-nos sorrindo com o nascer do dia,
Vamos nos deitar contristados ao cair da noite.

Abraçamos o mundo até que ele nos aguilhoe,
Então o amaldiçoamos e por asas suspiramos.

Vivemos, amamos, namoramos, nos casamos,
Cingimos as noivas e amortalhamos os finados.

Vamos rindo, chorando, esperando, temendo,
E esse é o peso que suportamos durante o ano.

Referência:

WILCOX, Ella Wheeler. The year. In: RASINSKI, Timothy; GRIFFITH, Lorraine (Writers and Compilers). Building fluency: through practice & performance. Grade 4. Huntington, CA: Shell Education, 2008. p. 16.


sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

J. G. Whittier - Ao ano que finda

Whittier, poeta e abolicionista norte-americano, despede-se do ano velho, crivado com as suas boas e más ocorrências, ele que parte para o mais sombrio dos esquecimentos, sem chances de retornar para novamente se esvair em tempo presente, uma vez que o tempo é grandeza que se escoa em apenas um sentido.

Mais um ano se agrega à história de nossas vidas e, inapelavelmente, avançamos para o mesmo destino do ano que ora finda: é como se rememorássemos, a cada doze meses, o regime biológico de cada ser humano sobre a terra, da natividade ao passamento.

J.A.R. – H.C.

J. G. Whittier
(1807-1892)

To the dying year

And thou, gray voyager to the breezeless sea
Of infinite Oblivion, speed thou on!
Another gift of Time succeedeth thee,
Fresh from the hand of God! for thou hast done
The errand of thy destiny, and none
May dream of thy returning. Go! and bear
Mortality’s frail records to thy cold,
Eternal prison-house; – the midnight prayer
Of suffering bosoms, and the fevered care
Of worldly hearts; the miser’s dream of gold;
Ambition’s grasp at greatness; the quenched light
Of broken spirits; the forgiven wrong,
And the abiding curse. Ay, bear along
These wrecks of thine own making. Lo! thy knell
Gathers upon the windy breath of night,
Its last and faintest echo. Fare thee well!

No caminho para o réveillon
(Mario Beaudoin: pintor canadense)

Ao ano que finda

E tu, viajante grisalho rumo ao mar sem brisa
Do infinito Oblívio, apressa-te.
Outra dádiva do Tempo te sucede,
Recém-saída da mão de Deus! porque cumpriste
O mandado do teu destino, e ninguém
Pode sonhar com o teu retorno. Vai! e transporta
Os frágeis assentos de mortalidade para a tua fria
E eterna prisão; – a prece da meia-noite
Das almas sofredoras, e a lida febril
Dos corações mundanos; o sonho de ouro do avaro;
A percepção do peso da ambição; a extinta luz
Dos espíritos consumidos; o mal perdoado,
E a permanente maldição. Ai, carrega contigo
Esses resíduos por ti mesmo gerados. Repara! Teu dobre
Integra-se ao sopro revolto da noite,
Seu eco mais débil e terminal. Vai-te em bom termo.

Referência:

WHITTIER, J. G. To the dying year. In: RUNKLE, Kate B. (Ed.). Festival poems: a collection for christmas, the new year and easter. Boston, MA: Roberts Brothers, 1884. p. 226-227.


quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Joseph Brodsky - Presépio

Num hipotético diálogo com Cristo já adulto, a voz lírica procura mostrar-lhe as diferenças entre as representações que se costuma fazer do seu nascimento, em presépios, com a realidade dos fatos que, então, teriam ocorrido – a começar pela diferença de tamanho entre as figuras de argila e as do mundo real.

E sob o aparente propósito da narrativa, Cristo tenderia a partir para uma outra galáxia, ao ver que sobre a terra ainda há tantas diferenças entre os homens, uns com propensão a se tornar maiores, outros a minguar ante os desígnios assentes em seus ombros.

J.A.R. – H.C.

Joseph Brodsky
(1940-1996)

Presepio

Младенец, Мария, Иосиф, цари,
скотина, верблюды, их поводыри,
в овчине до пят пастухи-исполины
все стало набором игрушек из глины.

В усыпанном блестками ватном снегу
пылает костер. И потрогать фольгу
звезды пальцем хочется; собственно, всеми
пятьюкак младенцу тогда в Вифлееме.

Тогда в Вифлееме все было крупней.
Но глине приятно с фольгою над ней
и ватой, разбросанной тут как попало,
играть роль того, что из виду пропало.

Теперь ты огромней, чем все они. Ты
теперь с недоступной для них высоты
полночным прохожим в окошко конурки
из космоса смотришь на эти фигурки.

Там жизнь продолжается, так как века
одних уменьшают в объеме, пока
другие растуткак случилось с тобою.
Там бьются фигурки со снежной крупою,

и самая меньшая пробует грудь.
И тянет зажмуриться, либошагнуть
в другую галактику, в гулкой пустыне
которой светилкак песку в Палестине.

(Декабрь 1991)

Natividade
(Jacob Jordaens: pintor flamengo)

Presepio

The wise men; Joseph; the tiny Infant; Mary;
the cows; the drovers, each with his dromedary;
the hulking shepherds in their sheepskins – they
have all become toy figures made of clay.

In the cotton-batting snow that’s strewn with glints,
a fire is blazing. You’d like to touch that tinsel
star with a finger – or all five of them,
as the infant wished to do in Bethlehem.

All this, in Bethlehem, was of greater size.
Yet the clay, round which the drifted cotton lies,
with tinsel overhead, feels good to be
enacting what we can no longer see.

Now you are huge compared to them, and high
beyond their ken. Like a midnight passerby
who finds the pane of some small hut aglow,
you peer from the cosmos at this little show.

There life goes on, although the centuries
require that some diminish by degrees,
while others grow, like you. The small folk there
contend with granular snow and icy air,

and the smallest reaches for the breast, and you
half wish to clench your eyes, or step into
a different galaxy, in whose wastes there shine
more lights than there are sands in Palestine.

(December 1991)

A Adoração dos Pastores
(Mattia Preti: pintor italiano)

Presépio

O primogênito, Maria, José e os três Reis Magos,
o boi e a vaca, os dromedários com os seus guias,
os pastores imensos envoltos em peles de ovelha
– todos se converteram em brinquedos de argila.

Sobre a neve de algodão cravejada de cintilações,
a fogueira está ardendo. E quanto tencionas tocar
aquela estrela prateada com um dedo, ou melhor,
com os cinco, tal como o quis o miúdo em Belém!

Naquela ocasião, em Belém, tudo foi bem maior.
Porém a argila, adornada com o papel laminado
e o algodão espalhado ao acaso, afigura-se ótima
para fazer as vezes do que não se pode mais ver.

Agora já te encontras bem maior que todos eles,
a uma altura que se lhes revela algo inalcançável,
como um viandante da meia-noite, que à fenestra
do estábulo, contempla do espaço essas figurinhas.

Entre eles, a vida segue igual, pois com os séculos
alguns reduzem-se em tamanho, enquanto outros
tornam-se maiores – como veio a ocorrer contigo.
Lá, há figuras a se engalfinhar com flocos de neve,

e a mais pequena inquieta-se à busca de um peito.
E te inclinas a fechar os olhos – ou a seguir destino
rumo a uma outra galáxia, em cujas ermas regiões
brilham tantas luzes quantas as areias na Palestina.

(Dezembro 1991)

Referência:

BRODSKY, Joseph. Presepio / Presepio. Translated into english by Richard Wilbur. In: __________. Nativity poems. Bilingual edition: english x russian. New York, NY: Farrar, Straus and Giroux, 2001. In russian: p. 82 and 84; in english: p. 83 and 85.