Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Mina Loy - Não há Vida nem Morte

Em quatro formulações impugnatórias sobre realidades contrastantes que, aos simples mortais, chegam a ser triviais – vida / morte, amor / luxúria, primeiro / último e espaço / tempo –, a poetisa inglesa colaciona as parelhas que lhes corresponderiam, a bem ver, para além da excessiva simplificação que conferimos àquelas dicotômicas questões.

De fato, são aforismos a transladar a terceiras perspectivas o significado daqueles temas tão caros à filosofia ou mesmo à ciência, grafando-os todos em maiúsculas: a voz lírica apreende algo intuitivamente os estados cognitivos de cada díade antinômica e, num jogo de expansão e de retração de ideias, deixa pender nos versos os rastros anímicos de seu exercício analítico.

J.A.R. – H.C.

 

Mina Loy

(1882-1966)

 

There is no Life or Death

 

There is no Life or Death,

Only activity

And in the absolute

Is no declivity.

There is no Love or Lust

Only propensity

Who would possess

Is a nonentity.

There is no First or Last

Only equality

And who would rule

Joins the majority

There is no Space or Time

Only intensity,

And tame things

Have no immensity.

 

Árvores da Vida e da Morte

(Lakhveer Azad: artista britânico)

 

Não há Vida nem Morte

 

Não há Vida nem Morte

Apenas atividade

E na plenitude

Não há debilidade.

Não há Amor nem Desejo

Apenas vontade

Quem queria possuir

Tornou-se nulidade.

Não há Primeiro nem Último

Apenas Igualdade

E quem iria dominar

Juntou-se à comunidade.

Não há Espaço nem Tempo

Apenas intensidade,

E as coisas dóceis

Não têm grandiosidade.


Referência:

LOY, Mina. There is no life or death / Não há vida nem morte. Tradução de Vanderley Mendonça. In: MENDONÇA, Vanderley (Ed.). Lira argenta: poesia em tradução. Edição bilíngue. São Paulo, SP: Selo Demônio Negro, 2017. Em inglês: p. 200; em português: p. 201.

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Fernando Mendes Vianna - Tríptico do Taumaturgo

Depois que aqui já se teve a definição do poeta como um plagiário, um bobo da corte ou mesmo um terrorista (Affonso Ávila), um fingidor de uma dor que deveras sente (Fernando Pessoa), um mundo confinando num homem (Victor Hugo), uma besta inglória (Moacyr Félix), um anjo da guarda (Waly Salomão) e por aí vai, agora nos chega Vianna para a todos afiançar que o vate é um milagreiro, um visionário, um adivinho!

Em rimas e métricas deliberadamente pendulares, o tríptico dispõe-se a tangenciar distintas representações da cultura ocidental e de suas abordagens líricas, sobretudo as atinentes aos lúbricos revérberos ao longo do domínio greco-romano, aos enigmas renascentistas nas representações artísticas da época – com destaque para o sorriso da Gioconda – etc., tudo isso amalgamado a inconfundíveis evocações circenses.

J.A.R. – H.C.

 

Fernando Mendes Vianna

(1933-2006)

 

Tríptico do Taumaturgo

 

I

 

Mágico, bufão, malabarista,

ao poeta nada urge, ruja embora

no circo o tempo. O tempo existe?

Não. A ruga é nuga nesta pista

– arena do labirinto do sem-fim.

O minuto do poeta é o trampolim

do empíreo à cova, e de novo

para o ovo de um eterno agora.

Do triste ao gaio e do gaio ao triste

e ao gaio, bailarino, se renova

– funâmbulo, papagaio, agonista –

o vate: valsa na navalha, fio

no caos, corda vocal de Fênix nunca fria,

gravata borboleta e logos imortal.

 

II

 

O minuto do aedo nunca é luto:

aquático, aéreo, térreo, ígneo,

luta lúdica do pélago com o sal,

bebe borras de álcool, bebe o gral.

O vate, vento e nuvem, tudo cria.

Demiurgo, a cartola é seu signo.

Atravessa o abismo a pé enxuto,

faz mágicas com a dor e a alegria

– entrudo sério, funéreo carnaval.

Voa em alcatifa até no inferno.

O poeta é um falerno sempiterno

– em verdade sem vinho, em verdade

adivinho de face de alvaiade,

terna esfinge pétrea e de terno.

 

III

 

Dando graças aos malhos e orvalhos,

ao mel, ao fel e às estridências,

ao silêncio, aos dós e aos bemóis,

escuto tudo. E mudo, sem voz,

vou olhando, vou ruminando a sós

desvivências de todas as vivências.

Cerrações, sóis, sudários, lençóis,

é tudo, tudo um eterno agora,

sem momento, sem memória, sem memento.

Tudo enigma, sorriso de Leonardo,

índice erguido para o pensamento

do esto alto. Entre torga, urze, cardo,

há o amor do eterno – jugo, doce fardo,

palimpsesto de puras reticências.

 

Em: “O silfo-hipogrifo” (1972)

 

Safo cantando para Homero

(Charles Nicolas Lafond: pintor francês)


Referência:

VIANNA, Fernando Mendes. Tríptico do taumaturgo. In: __________. Antologia pessoal. Brasília, DF: Thesaurus, 2001. p. 81-82. (‘Antologia pessoal’; n. 3)

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Ralph Waldo Emerson - A Tempestade de Neve

Emerson descreve nas linhas deste poema, presente em tantas antologias, as repercussões visuais provocadas por uma nevasca sobre as instalações de uma fazenda, a gerar muitos inconvenientes aos que ali se encontram, levando-os a praticamente paralisar suas atividades, mantendo-os na “tumultuosa privacidade resultante da borrasca”.

A despeito dos contratempos provocados pela neve – danos às estruturas, à natureza e aos negócios, atrasos nos transportes, idem nos correios etc. –, Emerson vislumbra algum proveito em todas os impactos gerados pela nevasca durante a noite: que os artistas, os arquitetos e os artífices humanos os imitem, naquilo que expressam de indômito labor, de força criadora.

J.A.R. – H.C.

 

Ralph Waldo Emerson

(1803-1882)

 

The Snowstorm

 

Announced by all the trumpets of the sky,

Arrives the snow, and, driving o’er the fields,

Seems nowhere to alight: the whited air

Hides hills and woods, the river, and the heaven,

And veils the farm-house at the garden’s end.

The sled and traveller stopped, the courier’s feet

Delayed, all friends shut out, the housemates sit

Around the radiant fireplace, enclosed

In a tumultuous privacy of storm.

Come see the north wind’s masonry.

Out of an unseen quarry evermore

Furnished with tile, the fierce artificer

Curves his white bastions with projected roof

Round every windward stake, or tree, or door.

Speeding, the myriad-handed, his wild work

So fanciful, so savage, nought cares he

For number or proportion. Mockingly,

On coop or kennel he hangs Parian wreaths;

A swan-like form invests the hidden thorn;

Fills up the farmer’s lane from wall to wall,

Maugre the farmer’s sighs; and, at the gate,

A tapering turret overtops the work.

And when his hours are numbered, and the world

Is all his own, retiring, as he were not,

Leaves, when the sun appears, astonished Art

To mimic in slow structures, stone by stone,

Built in an age, the mad wind’s night-work,

The frolic architecture of the snow.

 

Tempestade de neve:

Barco a vapor à entrada de um porto

(J. M. William Turner: artista inglês)

 

A Tempestade de Neve

 

Anunciada por todas as trombetas celestes,

Chega a neve, e, a revolutear pelos campos,

Parece não pousar em parte alguma: o ar alvacento

Esconde colinas e bosques, o rio e o firmamento;

Oculta a sede da fazenda ao final do jardim.

Trenó e viajante imobilizados, os pés do emissário

Desacelerados, distanciados todos os amigos,

Sentam-se os da casa em torno da radiante lareira,

Na tumultuosa privacidade resultante da borrasca.

Vejam-se as obras urdidas pelo vento do norte.

Por fora de uma escondida canteira, ordinariamente

Guarnecida por telhas, o feroz artífice torneia

Os seus bastiões brancos, com cobertura em projeção,

À volta de cada estaca, viga ou porta a barlavento.

Lépido, em miríades de mãos, seu lavor indômito

É tão excêntrico e selvagem, que nada lhe importam

Razões de número ou proporção. Zombeteiramente,

Em viveiro ou canil dependura grinaldas de Paros; (*)

Em forma de cisne envolve o encobertado espinheiro;

Obstrui a trilha do lavrador de um lado a outro,

Malgrado os seus suspiros; ao portão, de resto,

Um torreão coniforme sobreleva a obra.

E quando contadas estão suas horas, sendo o mundo

Todo seu, retira-se como se jamais houvesse existido,

Deixando para trás, ao nascer do sol, essa Arte assombrosa

A imitar lentas estruturas, pedra sobre pedra,

Erigidas numa época  a faina noturna do vento louco,

A pândega arquitetura da neve.


Nota:

(*) Alusão ao fino e branco mármore extraído nas imediações da cidade grega de Paros.

Referência:

EMERSON, Ralph Waldo. The snowstorm. In: MAYES, Frances. The discovery of poetry: a field guide to Reading and writing poems. 1st Harvest ed. San Diego, CA: Harvest & Harcout, 2001. p. 53-54.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Marianne Moore - Que são os anos?

A voz poética incita-nos a crescer mais alto, tal como um pássaro a cantar, para que, mesmo em nossa mortalidade, possamos alcançar alguma conexão com a eternidade: cantar, mesmo quando estejamos cativos nessa gaiola que é o corpo; compartilhar pensamentos e emoções, permitindo-nos vivenciar nossa humanidade num plano mais elevado e compensador.

Pode parecer paradoxal emparelhar a ideia de mortalidade à de eternidade. Mas por que deveríamos atribuir menor acento a esta em detrimento daquela, expondo-nos aos perigos do niilismo? “Carpe diem!”, exorta-nos Horácio (65 a.C. – 8 a.C.) a aproveitarmos a vida ao máximo, para que seus desafios e asperezas não absorvam a totalidade da existência – o que então poderia dar motivos aos que a veem como um “sem sentido”.

J.A.R. – H.C.

 

Marianne Moore

(1887-1972)

 

What are years?

 

What is our innocence,

what is our guilt? All are

naked, none is safe. And whence

is courage: the unanswered question,

the resolute doubt, –

dumbly calling, deafly listening – that

in misfortune, even death,

encourage others

and in its defeat, stirs

 

the soul to be strong? He

sees deep and is glad, who

accedes to mortality

and in his imprisonment rises

upon himself as

the sea in a chasm, struggling to be

free and unable to be,

in its surrendering

finds its continuing.

 

So he who strongly feels,

behaves. The very bird,

grwn taller as he sings, steels

his form straight up. Though he is captive,

his mighty singing

says, satisfaction is a lowly

thing, how pure a thing is joy.

This is mortality,

this is eternity.

 

A Caverna da Eternidade

(Luca Giordano: pintor italiano)

 

Que são os anos?

 

Que é nossa inocência,

qual a nossa culpa? Todos estão

despidos, ninguém está a salvo. E de onde

vem a coragem – a pergunta não respondida

a dúvida resoluta,

chamando em nudez, ouvindo surda que

no infortúnio, mesmo a morte

encoraja outros

e na derrota estimula

 

a alma para que seja forte? Vê

em profundidade e é feliz, aquele

que atinge a mortalidade

e em sua prisão se eleva

sobre si mesmo como

o mar em um despenhadeiro, lutando para ser

livre e incapaz de sê-lo,

e encontra em sua rendição

sua continuidade.

 

Assim também, aquele que sente fortemente

se comporta. O pássaro, mesmo,

crescido enquanto canta, erige em aço

sua forma ascendente. Embora cativo,

seu canto poderoso

diz que a satisfação é mesquinha

coisa, quanto é coisa pura a alegria.

Isto é mortalidade.

Isto é eternidade.


Referência:

MOORE, Marianne. What are years? / Que são os anos? Tradução de Jorge Wanderley. In: WANDERLEY, Márcia Cavendish; FIALHO, Carlos Eduardo; CAVENDISH, Sueli (Orgs.). Do jeito delas: vozes femininas de língua inglesa. Rio de Janeiro, RJ: 7Letras, 2008. Em inglês: p. 40; em português: p. 41.

domingo, 26 de setembro de 2021

Álvares de Azevedo - A Lagartixa

Metaforizando-se como uma lagartixa e a amada como o sol, o poeta discorre sobre os deleites de seu romântico amor em quatro estâncias de versos decassílabos, rimados apenas nas segundas e quartas linhas: o clarão dos olhos e o calor do corpo tornam-no inebriado como se houvesse se entregado aos prazeres de Baco, adormecendo ante o néctar dos melhores afetos de que é recebedor.

Inserto na segunda parte da “Lira dos Vinte Anos”, de 1853, o poema não deixa de causar alguma perplexidade, em especial por mencionar um animal – ou, talvez melhor, o vocábulo que lhe corresponde – raramente encontrável nos cânones da poesia romântica, ainda que uma de suas características mais marcantes seja exatamente o enaltecimento da relação homem x natureza.

J.A.R. – H.C.

 

Álvares de Azevedo

(1831-1852)

 

A Lagartixa

 

A lagartixa ao sol ardente vive,

E fazendo verão o corpo espicha:

O clarão dos teus olhos me dá vida,

Tu és o sol e eu sou a lagartixa.

 

Amo-te como o vinho e como o sono,

Tu és meu copo e amoroso leito...

Mas teu néctar de amor jamais se esgota,

Travesseiro não há como teu peito.

 

Posso agora viver: para coroas

Não preciso no prado colher flores;

Engrinaldo melhor a minha fronte

Nas rosas mais gentis de teus amores.

 

Vale todo um harém a minha bela,

Em fazer-me ditoso ela capricha;

Vivo ao sol de seus olhos namorados,

Como ao sol de verão a lagartixa.

 

A Lagartixa Vermelha

(Ann-Marie Cheung: artista canadense)


Referência:

AZEVEDO, Álvares de. A lagartixa. In: BARBOSA, Frederico (Seleção e Organização). Cinco séculos de poesia: antologia da poesia clássica brasileira. 4. ed. São Paulo, SP: Aquariana, 2011. p. 185.