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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS
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segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Giovanni Papini - Gog: As obras-primas da literatura

Nesta que é uma das obras mais sardônicas que jamais terei lido, o escritor italiano põe nos lábios da personagem “Gog”, quem sabe, as suas próprias perspectivas do que sejam as manifestações do mundo, especialmente aquelas que surgem mediante as ações dos homens: em linha com os interesses deste blog, há, em especial, dois excursos, a saber, “As obras-primas da literatura”, que ora transcrevo à apreciação do leitor, e “A indústria da poesia”, este já bem longo e que, talvez, mais tarde, resulte numa postagem neste sítio.

Sobre o tomo propriamente dito, “Gog”, de 1931, o escritor, tradutor e jornalista carioca Luiz Carlos Lisboa tece os comentários que antecedem a seção atinente ao texto propriamente dito de Papini. Quanto às notas prévias às referências, são de minha autoria, em busca de esclarecer os termos empregados e de identificar as obras a que aludem, a meu ver, as irônicas sínteses do autor italiano.

J.A.R. – H.C.

 

Giovanni Papini
(1881-1956)
 

Gog - Giovanni Papini

(LISBOA, 1990, p. 150-151)

 

A antiga técnica de supor que escrever um diário permite ao autor discutir todos os assuntos e manter-se como observador identificado com o personagem. Goggius, conhecido como Gog, é uma natureza esgotada que, tendo tudo experimentado, ainda procura uma possibilidade de salvação, na forma de um novo entusiasmo. A má-fé e o esnobismo são revelados nas pessoas e no mundo, pelos olhos do autor. Gog enriqueceu nos Estados Unidos, abandonou os negócios e iniciou uma vida de experiências e refinamentos. Assim, despreza algumas obras-primas como carentes de sentido e procura em homens célebres a resposta para a vida e a morte, o que evidentemente não encontra. Suas entrevistas com Gandhi, Ford, Freud, Einstein, Lênin e Shaw são maliciosas e sagazes. Gog quer ser o Anticristo, já que não pode ser Deus, mas não consegue divertir-se nem ser feliz por um momento.

 

O dinheiro afinal não pode nada, ao contrário do que havia pensado o personagem no início de sua carreira. O que ele lamenta é que nem célebre consegue tornar-se. Gog é o símbolo do mundo insatisfeito, poderoso e entediado dos nossos dias. Talvez Cristo, para o autor, seja a solução — mas isso só vai parecer real na vida de Papini um pouco mais tarde. Em Um homem acabado (1913), confessadamente autobiográfico, Papini recorda uma infância infeliz e revela uma inquietação religiosa. Aos vinte e dois anos funda um semanário, que vive apenas dois anos. Vieram outros, depois, e afinal ele é redator-chefe de Il Regno, em Florença. Essa vida ligada ao jornalismo revelou a Papini (e a Gog) um pouco de tudo o que existe no mundo, despojando-o de ilusões de toda espécie.

 

Papini sofreu sempre com um desejo de certeza que habitava seu espírito. Sua conversão ao catolicismo teve enorme repercussão. Sua História de Cristo (1921) foi traduzida em todas as línguas. Depois de O diabo, livro polêmico, de Santo Agostinho e de um volume de poesias (Espião do mundo, 1955), algumas evocações ao passado foram reunidas em A felicidade de ser infeliz. Esse livro póstumo, no entanto, conheceu pouca divulgação.

 

Capa de uma das
edições italianas de “Gog”

As obras-primas da literatura

Cuba, 7 de novembro

(PAPINI, [197-?], p. 6-7)

 

Para fins pessoais, precisava conhecer aquelas que os professores dos colleges (*) chamam as “obras-primas da literatura”. Encomendei a um bibliotecário formado, que me havia sido indicado como muito eficiente, uma lista condensada, pedindo que obtivesse os livros nas melhores edições. Assim que tive nas mãos estes tesouros não atendi mais ninguém e não me levantei mais da cama.

 

A princípio fiquei decepcionado e pareceu-me incrível que tais humbugs (**) fossem realmente o produto de primeira qualidade do espírito humano. O que não entendia, me parecia inútil; o que entendia não me divertia ou me ofendia. Coisas absurdas, cacetes: às vezes insignificantes ou nauseabundas. Narrativas que se verdadeiras me pareciam inverossímeis, e bobas se inventadas. Escrevi a um célebre professor da Universidade de W. perguntando se aquela lista era boa. Respondeu que sim, e me conformei. Tive forças para ler todos os livros, menos três ou quatro que não consegui suportar além das primeiras páginas.

 

Bandos de homens, ditos heróis, que se estriparam durante dez anos seguidos sob os muros de uma cidadezinha por causa de uma velha seduzida [a]; a viagem de um vivo no funil dos mortos como pretexto para falar mal dos mortos e dos vivos [b]; um louco magro e um louco gordo que andam pelo mundo em busca de pauladas [c]; um guerreiro que perde a razão por uma mulher e se diverte barbeando os carvalhos das florestas [d]; um covarde ao qual mataram o pai e que para vingá-lo faz morrer uma moça que o ama e outras personagens várias [e]; um diabo aleijado que arranca os telhados das casas para exibir suas vergonhas [f]; as aventuras de um homem médio que banca o gigante entre os pigmeus e o anão entre os gigantes, igualmente inoportuno e ridículo [g]; a odisseia de um idiota que através de uma sequência de cômicas tragédias sustenta ser este o melhor dos mundos [h]; as peripécias de um professor demoníaco servido por um demônio profissional [i]; a tediosa história de uma adúltera de província que se aborrece e no final se envenena [j]; as tiradas loquazes e incompreensíveis de um profeta acompanhado por uma águia e uma serpente [k]; um jovem pobre e febril que mata uma velha e depois, imbecil, não sabe sequer gozar o fruto do furto e acaba por cair nas mãos da polícia [l].

 

Pareceu-me entender, com minha cabeça virgem, que a tão exaltada literatura está apenas na idade na pedra, o que me desiludiu profundamente.

 

Contratei um especialista de poesia que tentou me confundir dizendo que aquelas obras valiam pelo estilo, a forma, a língua, as imagens, os pensamentos e que um espírito educado podia tirar delas a maior satisfação. Respondi que para mim, obrigado a ler quase todos aqueles livros em traduções, a forma interessava pouco e o conteúdo me parecia, assim como é, antiquado, insensato, burro e extravagante. Gastei cem dólares nesta consulta, sem nenhum proveito.

 

Felizmente conheci mais tarde alguns escritores jovens que confirmaram meu julgamento sobre aquelas velhas obras e me deram seus livros, onde encontrei, em meio a muitas coisas nebulosas, um alimento mais apropriado para meus gostos. Ficou-me, porém, a dúvida de que a literatura seja incapaz de aperfeiçoamentos decisivos: é muito provável que ninguém, daqui a um século, se dedique a uma indústria tão atrasada e pouco rendosa.


Notas:

[*]. Colleges – faculdades, universidades.

[**]. Humbugs – farsas, fraudes, embustes, imposturas.

[a]. Ilíada, de Homero (~VIII a.C.).

[b]. A Divina Comédia, de Dante Alighieri (1472).

[c]. Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1605).

[d]. Orlando Furioso, de Ludovico Ariosto (1516).

[e]. Hamlet, de William Shakespeare (1603).

[f]. O Diabo Coxo, de Luis Veléz Guevara (1641).

[g]. As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1726).

[h]. Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire (1759).

[i]. Fausto, de Johann W. von Goethe (1790).

[j]. Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1856).

[k]. Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche (1883).

[l]. Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski (1866).


Referências:

LISBOA, Luiz Carlos. Pequeno guia da literatura universal: através de quase duzentos livros que ninguém mais pode ignorar impunemente. 1. ed. São Paulo, SP: Círculo do Livro, 1990.

PAPINI, Giovanni. Gog. Tradução de Marina Colasanti. Rio de Janeiro, GB: Nova Fronteira, [197-?].

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Fome - Knut Hamsun




HAMSUN, Kunt. Fome. Tradução de Adelina Fernandes. Belo Horizonte: Itatiaia, 2004. (Coleção Excelsior, Vol. 10).

Da autoria do escritor norueguês Kunt Hamsun, o romance “Fome”, publicado em 1890, foi uma de minhas leituras recentes e, sobre ele, teço a seguir alguns breves comentários.

Sumário:

“Passou-se isto no tempo em que eu perambulava faminto por Cristânia, essa cidade singular de onde ninguém sai sem levar consigo os traços de sua estada por lá...”.

Tal é a nota preambular da obra sob análise: vê-se aí o nome anterior atribuído à atual capital da Noruega, Oslo, onde se passa a narrativa, plena em descrições dos efeitos da carência alimentar sobre o equilíbrio do psiquismo e da mente do escritor-protagonista, que aparece no texto em primeira pessoa, sem que seja identificado nominalmente.

Ambientado em fins do século XIX, nomeadamente no trânsito entre as estações do outono para o inverno, “Fome” retrata as condições míseras do quotidiano do autor, a ganhar a vida escrevendo artigos e contos para jornais, circunstância que sugere a ocorrência de elementos autobiográficos a compor a trama da novela.

Um homem jovem, de vinte e poucos anos, mesmo ao passar por experiências constrangedoras e humilhantes, busca a todo custo manter a dignidade: a opressão da fome raras vezes supera-lhe a propensão a manter o bom humor.

Repetidas vezes o personagem sugere que a intensa inércia para a produção de escritos sobrevém-lhe como resultado de estados psíquicos alterados pelo efeito da desnutrição. Decaem-lhe as condições social, mental e física, neste último caso, a provocar-lhe alterações perceptíveis no corpo, como a queda de cabelos aos tufos.

Sob esse pano de fundo, transcorrem inúmeros episódios, desenvolvidos nas quatro partes que compõem o livro. Num desses episódios, o faminto passa a noite em uma cela de prisão, passando-se por um bem informado jornalista que perdeu as chaves de seu apartamento. Em outro, conhece Ilayali, uma jovem com quem se envolve, com algum grau de intimidade física. Noutro, ainda, viu-se admoestado e repelido pela anfitriã da pousada em que se encontrava, tudo por não cumprir com suas dívidas, tendo que dormir no chão da cozinha, ante os contratempos gerados pela jogatina do marido e o banzé de seus dois filhos.

Incapaz de se estabelecer profissionalmente, seja por debilidade de propósitos seja pelos efeitos devastadores da carência, o protagonista se prende ao subterfúgio recorrente de prometer saldar os seus débitos, assim que terminar alguns trabalhos que prometem lhe resgatar do infortúnio em que está submerso. Contudo, isso jamais ocorre.

Ao fim, em passeio pelo porto da cidade, aceita um trabalho braçal em Leeds, Inglaterra, onde se fará um carregamento de carvão para Cadiz, na Espanha. Embarca então no elegante vapor de bandeira russa, o Coperogo, para um destino que lhe exigirá esforço talvez muito superior ao de natureza intelectual, a que, até então, estivera exposto.

“No fiorde, arrastei-me uma vez mais, suado, febril e exausto. Avistei a terra e despedi-me pelo presente da cidade, de Cristânia, onde as janelas brilhavam tão intensamente em todas as casas”.

Avaliação:

Inicio com um excerto de autoria de Reynaldo Damazio, em análise ao relançamento da obra em apreço pela Geração Editorial, com tradução de Carlos Drummond de Andrade (Guia da Folha – Livros, Discos, Filmes – 25.9.2009. p. 14.):

“Vagabundagem orgulhosa, crise de perspectivas, caminho à beira da exclusão social e persistência no projeto de tornar-se escritor dão ao personagem de ‘Fome’ as características do anti-herói moderno, no enfrentamento da sociedade e de suas convenções. Se esse tipo de rebeldia parece datado, é preciso avaliar onde a utopia se perdeu”.

Para além de todas as possibilidades de interpretação de uma obra – tema muito bem abordado por Umberto Eco em “Interpretação e Superinterpretação” –, julgo que haja certa exacerbação na avaliação do jornalista da F.S.P., no que tange a atribuir ao protagonista do romance – e, em última instância, ao seu autor –, a intenção de confrontar a sociedade e suas convenções.

Aliás, não são tão nítidos os sentimentos antagônicos do protagonista em relação à sociedade. Em certas passagens chega a atribuir os seus contratempos ao destino ou à vontade divina. Veja-se:

“A ideia de Deus voltava a inquietar-me. Parecia-me de uma cruel irresponsabilidade que Ele se interpusesse no meu caminho, sempre que eu pretendia uma colocação, para impedir a realização das minhas melhores esperanças. E, contudo, Senhor meu Deus, era apenas o pão nosso de cada dia o que eu implorava!”.

Ou seja: há mais matizes aristotélicos do que marxistas neste enredo de Hamsun. E, por conseguinte, abordagens naturalísticas fazem o texto se aproximar bem mais de certas linhas de argumentação de um Zola do que, propriamente, de um Orwell.

E mais: como não associar os transtornos psicóticos de Raskólnikov, em “Crime e Castigo”, aos do personagem de “Fome”, muito embora tenham origens bastante distintas? É o tratamento psicológico deferido às figuras maiores de ambos os romances que faz o ambiente das respectivas histórias convergir para o cinzento e o circunspecto...

Comparações à parte, a obra de Hamsun tem brilho próprio, por sua escrita fluente e imaginosa, submersa em atmosfera de pesadelo, sem definhar na autopiedade. Por isso mesmo, o norueguês foi merecedor de um Nobel: o de 1920.

H.C./J.A.R.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Mediações Hedonistas - Parsons e Poe - Muito Prazer em Conhecê-los !

Quando, ainda em 1975, Alan Parsons lançou o compacto de abertura de seu projeto para divulgação do "rock progressivo" - o denominado Alan Parsons Project -, jamais imaginaria que poderia criar um disco à altura da fama que lhe sobreveio por haver também produzido uma das mais inesquecíveis obras do grupo Pink Floyd, qual seja, The Dark Side of the Moon.

Referimo-nos a Tales of Mystery and Imagination, com letras e músicas livremente concebidas à luz dos contos de horror e de suspense de Allan Poe, que se mantém como um meritório contributo à memória do autor americano.

Percebe-se, já na própria apresentação da faixa inicial A Dream a Within a Dream, a pretensão de transformar em música certas "fantasias delicadas" que, por não constituírem pensamentos, são irredutíveis aos signos linguísticos, como se fossem, mesmo num plano de realidade, um sonho imbricado em outro sonho.



Outras duas faixas fazem referência direta a dois dos mais famosos contos de Poe - The Raven (O Corvo) e The Cash of Amontillado (O Barril de Amontilado) -, estando muito bem adaptadas às letras imaginosas, como a provar que literatura e música podem muito bem combinar-se para aumentar a estatura do prazer usufruível, por intermédio do incremento gestáltico de nossas experiências sinestésicas, experiências essas que, de outro modo, permaneceriam "estanques" ao que pudéssemos extrair, de cada vez, aos nossos "olhos ou ouvidos atentos".

Pena mesmo é que os sentidos do olfato e do paladar não tenham se juntado mais prontamente ao acervo cada vez mais sincrético das artes, ainda que, marginalmente, aqui ou ali, apareçam obras que os combinem maravilhosamente bem, para colocá-los em evidência.

A conjugar visão e audição, para produzir estímulos gustativos poderosos, mencionaria o filme A Festa de Babette, de Gabriel Axel (1987). Quanto ao impacto - positivo ou negativo - do olfato, quem poderia se esquecer de O Perfume, de Tom Tykwer (2006), com roteiro adaptado ao livro homônimo do escritor alemão Patrick Süskind, publicado em 1985 ?!

(JAR/HC)

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Emma Bovary x Anna Karenina - Algo em Comum ?


A história de Emma Bovary pode não ser venturosa – e, claro, sequer consegue ocultar o nexo moral subjacente –, mas ainda assim, em seu vaticínio tresloucado, está permeada de sentimentos humanos em estado puro, o que a submete ao escrutínio silente do leitor, o melhor julgador entre todos os que conhecem as peripécias de Emma.
Ordenado em torno das sempre mais insinuantes ações da esposa de Bovary – um médico por demais complacente e truão, que a verossimilhança de sua existência poderia ser colocada à prova –, a obra converge, de modo implacável, para o seu fim trágico e determinístico, de sorte que, não fosse a estilística explícita e reconhecidamente realista de seu texto, poder-se-ia qualificá-la como espreitando, por exemplo, as tendências naturalistas de um Zola.
Emma, insatisfeita com a vida tacanha que leva junto ao marido no universo provinciano do interior da França, passa a sonhar platonicamente com outros amores e, pouco depois, não mais se satisfaz com tais prazeres meramente metafísicos, senão que suas aventuras se materializam, primeiramente com Rodolphe, um contumaz sedutor, posteriormente com León, ainda um estudante universitário em Rouen.
Nessa toada, vem a comprometer o patrimônio da família por meio da assunção de obrigações cambiárias, que, mais tarde, levariam o casal à suprema humilhação de ver seus bens executados em hasta pública, para saldar as dívidas contraídas pela dissoluta senhora.
Pouco antes, Emma buscando salvar as aparências, procura por Rodolphe e León para que lhe ajudassem financeiramente, tendo ainda recebido de um outro pretendente a petulante proposta de "troca de favores", mas tudo em vão, o que a levou a suicidar-se com arsênico.
Mostra-se tão semelhante o fim trágico de Emma Bovary com a morte sob os trilhos de Anna Karenina, personagem do clássico homônimo de Tolstoi, que ilações outras não se poderiam adotar que não fossem as atinentes ao tom moralista de ambas as obras, a conduzir suas heroínas à morte, pela pretensão insana de romperem as relações conjugais, tornando os esposos alvo de considerações depreciativas.
É tão onipresente a comparação entre as mencionadas personagens, que nem mesmo o crítico norteamericano Harold Bloom dela escapou:
"A auto-imolação de Emma estabelece estranho contraste com a de Anna Karenina, de Tolstoi. O moralismo apocalíptico de Tolstoi causa a destruição de Anna, mas a sua morte nos causa uma sensação de alívio trágico; o seu sofrimento é grande demais para continuar existindo. Comparado ao de Anna, o sofrimento de Emma é banal, mas Emma é hedonista demais para suportá-lo. A morte de Emma carece de grandiosidade, mas o fato muito nos comove, porque tamanha perda de vitalidade sexual representa a derrota do sentido bíblico da noção de Benção, isto é, mais vida. A morte de Emma significa menos vida, menos possibilidade de prazer natural, menos de nós mesmos, nos dias que ainda nos restam" (Gênio; Ed. Objetiva; 2003; p. 674-675).
À parte a conotação de grandiosidade ou pequenez do sofrimento das heroínas, Bloom não é convincente sobre a pretensão de que tudo não se acabe logo e os leitores se aliviem do sentimento trágico de Emma, tal como no caso de Anna: neste ponto, ambas as obras se equivalem e o vaticínio a que nos reportamos mais acima acaba por sustentar a tese de valoração moral que as lastreia.

(Harold Bloom, à esquerda, e George Steiner, à direita)
Mais convincente, George Steiner afirma que Tolstoi, em sua obra-prima, condenou a sociedade que persegue Anna até a morte, invocando, ao mesmo tempo, as punições inexoráveis da lei moral. Neste último caso, tonrou-se famosa a epígrage paulina que emprega: "A vingança é minha, e eu a executarei". Nada tão distante de Flaubert, que, no entanto, "distancia-se da tela e pinta à distância de um braço, com maldade fria". Steiner sintetiza:
"Os dois romances são obras-primas do seu gênero. Zola considerava 'Madame Bovary' a consumação do realismo, a obra máxima de gênio numa tradição que remetia aos realistas do século XVIII e a Balzac. Romain Rolland o considerava o único romance francês passível de se comparar a Tolstoi 'devido ao seu poder de transmitir vida, e a totalidade da vida'. Entretanto, as duas realizações não se igualam de maneira alguma; 'Anna Karenina' é indubitavelmente maior, maior em escopo, em humanidade, em realização técnica. A similaridade de certos temas apenas reforça nossa percepção de magnitudes distintas" (Tolstoi ou Dostoiévski; Ed. Perspectiva; 2006; p. 35, 43 e 48).
Nada obstante, tal como Bloom, Steiner não responde à pergunta que remanesce ao término da leitura de "Madame Bovary": por que Emma tem que morrer ao final ? Se há suficiente maldade em Flaubert, maior não seria se deixasse Emma a sofrer as humilhações em vida ? Ou a morte não quereria significar que os casos da espécie têm que ser purgados pelo limite incontornável da existência ?
(JAR/HC)