Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Antônio Olinto - Balada de Ano Novo

As festas de Ano Novo denotam um “eterno retorno” ao início da contagem dos tempos – um “corte”, como assinala o poeta −, finalizando os dias de um vetusto senhor e iniciando os de uma criança que se apraz em correr pela casa, em companhia de outras crianças e dos brinquedos que decerto ganhara pelo ensejo do Natal.

E nesse trânsito todos procuramos capturar novos sentidos a serem atribuídos aos dias futuros, plenos de significado para nossos atribulados quotidianos, de sorte que, num vislumbre de serenidade e coerência, possamos avançar, seguramente, rumo ao cumprimento de nossas missões de vida: um grande Ano Novo para todo(a)s!

J.A.R. – H.C.

Antônio Olinto

(1919-2009)

 

Balada de Ano Novo

 

Ano Novo chega e bate

no tempo já compilado,

sacode a imobilidade

dos tempos de cada lado,

 

arremessa vento em velas,

põe menino em corredores

menino pega na bola,

tira grito dos temores,

 

dobra tempo e tempo vira,

coleciona vidro em gude,

prega a tampa no caminho

até que a aparência mude,

 

é menino mas é tempo

regressando à luz da vela,

a vela que vela acesa

e faz o tom da janela

 

ser outro corte no tempo.

Ano Novo tempo solta,

prossegue e rompe as firmezas

do tempo que avança e volta,

 

fica parado na porta

vendo a já concentração

de tempos sem pedra ou rótulo

numa queda afirmação

 

de queda tombada quieta

e logo petrificada.

Ano Novo é tempo e não

parece coisa integrada

 

nas dobras que se vieram

formando pelas paredes

da rota nem sempre lisa.

Se queres o dia e pedes

 

um pouco de entendimento

de puros significados,

ficas no gume inachável

de sinais sem base ou lados.

 

No tempo que surge e cai

todo momento é capaz

de tentar saber do tempo

o tempo que o tempo faz

 

e livros de limpos números

enumeram claros textos

de futuros indizíveis

e tempos em sãos pretextos

 

de agarrar o tempo exato

existente em cada quina

e dar a tudo a matéria

da mulher e da menina

 

na balada do Ano Novo

de tempos chegando em jorros

e ficando na mudança

de chãos em possíveis morros,

 

de brados na calma lida,

de gesto no jato e pouso,

de luta posta em sossego,

de avanço feito em repouso.

 

Ano Novo

(Yuri Pimenov: pintor russo)


Referência:

OLINTO, Antônio. Balada de ano novo. In: __________. Antologia poética. Rio de Janeiro, GB: Editora Leitura, 1966. p. 125-126.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Juan Gil-Albert - Despedida de um ano: 1936

O poeta espanhol, numa dicção densa e elegíaca, despede-se de 1936, ano particularmente trágico e desolador para os seus conterrâneos, pois que marcou o início dos conflitos da Guerra Civil Espanhola (jul.1936 – abr.1939), deixando, por toda parte, rastros de sangue e morte, as cidades devastadas e os campos abandonados.

A par de tais dissabores, percebe-se que o poeta não deixa de vislumbrar, em favor de seu país, a expectativa de que tamanhas “jornadas turbulentas” sejam capazes de varrer a melancolia que a tudo assola, trazendo liberdade aos mortos, ao mesmo tempo que esperança aos vivos, para que possam superar suas mazelas.

J.A.R. – H.C.

 

Juan Gil-Albert

(1904-1994)

 

Despedida de un año: 1936

 

Dentro de breves horas

habrás partido para siempre,

como un barco fantasma que se aleja

hacia el confín sin árboles

donde la tierra pierde sus dominios.

Soltarás las amarras

sacudido por una tempestad imprevista,

y lanzando un silencio ensordecedor

irás a buscar esa teoria del tiempo

que aclamará tu llegada inmortal,

con los ojos pávidos

por el horror de tu vida reciente.

Eres aún el halo que se escapa de nuestras bocas,

el impalpable curador de las heridas.

Unas horas tan solo y no serás

este delgado aire que evaporan los ríos,

el día venidero que asiste a las penosas realidades

tendido en muelles huertos,

ni tu nombre designará

a la inmensa muchedumbre que se agita

por el suelo encrespado.

(Oh tiempo, pronto a despeñarse sobre el abismo!

Tus colmadas bodegas de sangre,

las víctimas inmoladas en tu seno,

las hecatombes que ahogan tu garganta

con un crudo espesor de humo negro,

dejan de ser la vida encarnizada,

pasan a ser los hechos,

y un sutil resplandor los alumbra

cuando tus pies ligeros

dan el postrero paso decisivo

al final de los montes.

Loor a ti, demoledor insensible,

por cuyas jornadas turbulentas

la intensa melancolia coronada de adormideras

huye gimiendo al son de las ruinas.

Loor a ti, que has sabido dejar como libre

el parado corazón de los hombres.

Tu definitiva noche se cierne sobre la tierra,

y los luchadores en las frias avanzadas

por segunda vez te piensan

como un ser mágico que ahora se desvanece

arrancando de la realidad

una última vagoneta de cadáveres.

Loor a ti, sin embargo,

que con espada de fuego y pecho de piedra,

asistirás en el umbral

a esta era en que mi país

inicia su esperanza de continuidad

sobre sus campos abandonados,

sobre sus ciudades deshechas.

 

Guernica

(Pablo Picasso: pintor espanhol)

 

Despedida de um ano: 1936

 

Dentro de breves horas

terás partido para sempre,

como um navio fantasma que se afasta

até o confim sem árvores,

onde a terra perde seus domínios.

Soltarás as amarras,

sacudido por uma tempestade imprevista,

e, lançando um silêncio ensurdecedor,

irás em busca daquela teoria do tempo

que saudará tua chegada imortal,

com os olhos pávidos

pelo horror de tua vida recente.

És ainda o halo que escapa de nossas bocas,

o impalpável curador das feridas.

Tão apenas algumas horas e não serás

este ar rarefeito que os rios evaporam,

o dia vindouro que assiste às penosas realidades,

estendido em aprazíveis hortos,

nem teu nome designará

a imensa multidão que se agita

pelo solo encrespado.

Oh tempo, pronto para precipitar-se no abismo!

Teus porões repletos de sangue,

as vítimas imoladas em teu seio,

as hecatombes que sufocam tua garganta

com uma crua espessura de fumaça negra,

deixam de ser a vida encarniçada,

passam a ser os fatos,

e um sutil esplendor os ilumina

quando os teus pés lépidos

dão o derradeiro passo decisivo,

ao final das montanhas.

Louvores a ti, demolidor insensível,

por cujas jornadas turbulentas

a intensa melancolia, coroada de papoulas,

foge gemendo ao som das ruínas.

Louvores a ti, que soubeste como libertar

o parado coração dos homens.

Tua definitiva noite assoma sobre a terra,

e os combatentes, nos postos avançados,

pela segunda vez pensam em ti

como um ser mágico que agora se desvanece,

arrancando da realidade

um último vagão de cadáveres.

Louvores a ti, seja como for,

que com espada de fogo e peito de pedra,

assistirás no umbral

a esta era em que meu país

inicia sua esperança de continuidade

sobre seus campos abandonados,

sobre suas cidades desfeitas.


Referência:

GIL-ALBERT, Juan. Despedida de un año: 1936. In: __________. Primera obra poética: 1936-1938. Prólogo y bibliografía por Pedro J. de la Peña. Valencia, ES: Consell Valencià de Cultura, mar.1996. p. 167-168. (Col.lecció ‘Els Quatre Vents’)

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

W. H. Auden - Bem, isso é tudo

Estamos a 29.12 e ainda não é a exata hora de se desmontar a árvore de Natal e de se recolher toda a decoração das festas do fim de ano – na forma em que reclama a voz lírica a enunciar o excerto poético abaixo, vale dizer, na terceira parte de um longo Oratório de Natal, intitulado “For the time being” (“Pelo momento”) (1944), dedicado por Auden à memória de sua recém-falecida genitora.

Há nele interessantes injunções psicológicas e filosóficas, em conexão com tradicionais passagens da Natividade, conferindo aos versos um intrépido matiz: trata-se de uma dádiva do poeta aos seus leitores, vivendo, como ele, “o momento mais difícil de todos”, a saber, o tempo presente, um ciclo de desafios e de bênçãos, com duração limitada e porvir alimentado pela fé.

J.A.R. – H.C.

 

W. H. Auden

(1907-1973)

 

From “For the time being”

 

Well, so that is that. Now we must dismantle the tree,

Putting the decorations back into their cardboard boxes –

Some have got broken – and carrying them up to the attic.

The holly and the mistletoe must be taken down and burnt,

And the children got ready for school. There are enough

Left-overs to do, warmed-up, for the rest of the week –

Not that we have much appetite, having drunk such a lot,

Stayed up so late, attempted – quite unsuccessfully –

To love all of our relatives, and in general

Grossly overestimated our powers. Once again

As in previous years we have seen the actual Vision and failed

To do more than entertain it as an agreeable

Possibility, once again we have sent Him away,

Begging though to remain His disobedient servant,

The promising child who cannot keep His word for long.

The Christmas Feast is already a fading memory,

And already the mind begins to be vaguely aware

Of an unpleasant whiff of apprehension at the thought

Of Lent and Good Friday which cannot, after all, now

Be very far off. But, for the time being, here we all are,

Back in the moderate Aristotelian city

Of darning and the Eight-Fifteen, where Euclid’s geometry

And Newton’s mechanics would account for our experience,

And the kitchen table exists because I scrub it.

It seems to have shrunk during the holidays. The streets

Are much narrower than we remembered; we had forgotten

The office was as depressing as this. To those who have seen

The Child, however dimly, however incredulously,

The Time Being is, in a sense, the most trying time of all.

For the innocent children who whispered so excitedly

Outside the locked door where they knew the presents to be

Grew up when it opened. Now, recollecting that moment

We can repress the joy, but the guilt remains conscious;

Remembering the stable where for once in our lives

Everything became a You and nothing was an It.

And craving the sensation but ignoring the cause,

We look round for something, no matter what, to inhibit

Our self-reflection, and the obvious thing for that purpose

Would be some great suffering. So, once we have met the Son,

We are tempted ever after to pray to the Father;

“Lead us into temptation and evil for our sake.”

They will come, all right, don’t worry; probably in a form

That we do not expect, and certainly with a force

More dreadful than we can imagine. In the meantime

There are bills to be paid, machines to keep in repair,

Irregular verbs to learn, the Time Being to redeem

From insignificance. The happy morning is over,

The night of agony still to come; the time is noon:

When the Spirit must practice his scales of rejoicing

Without even a hostile audience, and the Soul endure

A silence that is neither for nor against her faith

That God’s Will will be done, that, in spite of her prayers,

God will cheat no one, not even the world of its triumph.

 

Véspera do Ano Novo

(Grigory Sokolovsky: pintor ucraniano)

 

Excerto de “Pelo momento

 

Bem, isso é tudo. Agora devemos desmontar a árvore,

Repor os adornos em suas caixas de papelão –

Alguns foram avariados – e carregá-los para o sótão.

O azevinho e o visco devem ser retirados e queimados,

E as crianças prepararem-se para a escola. Há sobras

Suficientes a guarnecer, aquecidas, pelo resto da semana –

Não que tenhamos muito apetite, tendo bebido tanto,

Ficado acordados até tarde, tentado – sem êxito –

Amar todos os nossos familiares e, em geral,

Superestimado grosseiramente nossos poderes. Uma vez mais,

Como nos anos anteriores, contemplamos a verdadeira Visão

E não conseguimos mais que considerá-la uma agradável

Possibilidade, mais uma vez mandamo-Lo embora,

Rogando-Lhe, porém, para seguir como Seu desobediente servo,

A promitente criança incapaz de sempre cumprir Sua palavra.

As Festas do Natal já são memórias em desvanecimento,

E logo a mente começa a estar vagamente consciente

De uma desagradável lufada de apreensão, ao refletir sobre

A Quaresma e a Sexta-Feira Santa, as quais agora, afinal,

Tão longe não distam. Mas, por enquanto, aqui estamos todos,

De volta à moderada cidade aristotélica da reparação e aos

Oitocentos e Quinze, época em que a geometria de Euclides

E a mecânica de Newton dariam conta de nossa experiência,

E da existência da mesa da cozinha, uma vez que a esfrego.

Parece que houve contração durante as férias. As ruas

São bem mais estreitas do que lembrávamos; tínhamos

Esquecido de que o escritório era assim tão deprimente. Aos

Que viram o Menino, por mais vago e incrédulo que seja,

O Tempo Presente é, de certa forma, o mais difícil de todos.

Pois as inocentes crianças que tão excitadamente sussurravam

Por trás da porta trancada, onde sabiam estar os presentes,

Cresceram quando ela se abriu. Agora, evocando o momento,

Podemos reprimir a alegria, mas a culpa subsiste-nos consciente;

Recordando o estábulo onde, por uma vez em nossas vidas,

Tudo se converteu em um Tu e coisa alguma era o Outro.

E ansiando pela sensação, embora a ignorar a causa,

Buscamos algo ao redor, não importa o que aconteça, para inibir

Nossa autorreflexão, e um móbil óbvio para tal propósito

Seria um grande sofrimento. Assim, conhecendo o Filho,

Somos doravante tentados a suplicar ao Pai:

“Conduze-nos à tentação e ao mal, pelo nosso bem”.

Eles virão, tudo certo, não se aflijam; porventura em uma forma

Que não aguardamos, e certamente com uma força

Mais espantosa do que a podemos imaginar. Nesse ínterim,

Há contas a pagar, máquinas que prosseguem em reparos,

Verbos irregulares a aprender, o Tempo Presente a redimir

Da insignificância. A manhã feliz chegou a termo,

A noite da agonia ainda por vir; é o ápice do meio-dia:

Quando o Espírito deve pôr em prática suas escalas de júbilo,

Mesmo sem uma audiência hostil, e a Alma suportar

Um silêncio, que não é nem a favor nem contra a sua fé,

De que se fará a Vontade de Deus; de que, malgrado seus rogos,

Deus não enganará ninguém, nem mesmo, de seu triunfo, o mundo.


Referência:

AUDEN, W. H. From “For the time being”. In: HOLLANDER, John; McCLATCHY, J. D. (Sel. & Ed.). Christmas poems. New York, NY: Alfred A. Knopf, 1999. p. 221-223. (‘Everyman’s Library: Pocket Poets’)

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Gustavo Teixeira - A Estrela dos Magos

Presente no rol de poemas de “Último Evangelho”, com poesias datadas de 1934 a 1937, este soneto alexandrino do poeta paulista é um dos muitos que, em tal obra, dizem respeito a cenas bíblicas descritas no Novo Testamento − no caso específico, daquilo que se descreve em Mateus 2:1-2: os magos vindos do oriente teriam se guiado por uma estrela para chegar até o local onde Jesus nascera.

A hermenêutica bíblica já declinou páginas e páginas sobre o evento em enfoque, muitas delas contraditórias entre si, algumas a asseverar a ocorrência de interpolações fantasiosas ou imprecisas nas narrativas dos evangelistas Mateus e Lucas. Seja como for, nada desprezível é a torrente caudalosa de obras de arte – sobretudo na literatura e na pintura − embasadas em tais relatos.

J.A.R. – H.C.

 

Gustavo de Paula Teixeira

(1881-1937)

 

A Estrela dos Magos

 

Certa manhã, no céu radioso do Levante,

Um ponto se ilumina: − Uma estrela aparece,

E, deslizando no ar, num sulco deslumbrante,

Trêmula e branca, fosforesce, fosforesce.

 

Mesmo ao clarão do sol mais vivo, a joia errante

Arde, tremeluzindo, alva como uma prece.

Como uma gota da água ao lado de um diamante

Vésper ao pé da irmã do Oriente empalidece.

 

Seja fúlgida aurora ou tarde nebulosa,

A estrela, cada vez mais linda e luminosa,

Caminha, no horizonte acesa noite e dia.

 

Real cortejo a segue em toda a trajetória.

Só se ofusca em Belém: declina a sua glória

Diante do olhar de mãe que volve ao céu Maria...

 

A Adoração dos Magos

(Hendrick ter Brugghen: pintor holandês)


Referência:

TEIXEIRA, Gustavo. A estrela dos magos. In: __________. Poesias completas. Prefácio de Cassiano Ricardo. São Paulo, SP: Anhambi, 1959. p. 457.