Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de agosto de 2019

Pablo Neruda - Soneto XVII

Carlos Nejar reaparece hoje, mas desta feita não com um poema de sua lavra, senão na do vate chileno: o “imortal” gaúcho é o tradutor deste soneto, um dos mais replicados entre os que compõem a obra “Cien sonetos de amor” (“Cem Sonetos de Amor”), de 1959, de Neruda, eis que a desvelar as emoções da experiência de um afeto imperecível e incondicional.

Estaria um amor assim entre a beleza e a escuridão, fora do plano lógico, a ressoar nas almas dos amantes, mais além das imagens relatadas, palpáveis embora superficiais – rosa de sal, topázio ou flecha de cravos –, com o seu potencial para propagar a flama. Amplie-se, em outra mirada, a perspectiva mais perene: um amor tão profundo que os amantes deixam de ser “um para o outro”, pois são tantos outros quantos poderiam ser!

J.A.R. – H.C.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Soneto XVII

No te amo como si fueras rosa de sal, topacio
o flecha de claveles que propagan el fuego:
te amo como se aman ciertas cosas oscuras,
secretamente, entre la sombra y el alma.

Te amo como la planta que no florece y lleva
dentro de sí, escondida, la luz de aquellas flores,
y gracias a tu amor vive oscuro en mi cuerpo
el apretado aroma que ascendió de la tierra.

Te amo sin saber cómo, ni cuándo, ni de dónde,
te amo directamente sin problemas ni orgullo:
así te amo porque no sé amar de otra manera,

sino así de este modo en que no soy ni eres,
tan cerca que tu mano sobre mi pecho es mía,
tan cerca que se cierran tus ojos con mi sueño.

Pigmalião e Galateia
(Jean-Léon Gérôme: pintor francês)

Soneto XVII

Não te amo como se fosses rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.

Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito e minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.

Referências:

Em Espanhol

NERUDA, Pablo. Soneto XVII. In: __________. Antología poética. Córdoba, AR: Ediciones del Sur, nov.2003. p. 64. Disponível neste endereço. Acesso em: 12 ago. 2019.

Em Português

NERUDA, Pablo. Soneto XVII. Tradução de Carlos Nejar. In: __________. Cem sonetos de amor. Tradução de Carlos Nejar. Porto Alegre, RS: L&PM, 1997. p. 23. (Coleção “L&PM Pocket”; v. 19).

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Carlos Nejar - Luís Vaz de Camões

Decerto, este poema de Nejar, dedicado a Camões – e Camões a exprimir-se imaginosamente em primeira pessoa – é um dos mais, senão o mais belo escrito poético brasileiro sobre o grande poeta português. Não sem motivos, Moriconi o selecionou entre os cem melhores do século passado.

O poeta estaria a elucubrar sobre os contratempos em que se meteu e as injustiças que lhe foram cometidas, a despeito de – distintamente de seus detratores – muito tenha amado a pátria lusitana e, mais do que ninguém, civilizado o idioma português. Caetano que o diga em “Língua”: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões (...)”.

Mas há quem a destrate sobremaneira, como um certo ex-juiz da “República de Curitiba”, depois ministro, mais parecendo que a máxima pessoana – “Minha pátria é minha língua” – teria sido lançada ao mar: “English is the best language”, diria o indigitado!

J.A.R. – H.C.

Carlos Nejar
(n. 1939)

Luís Vaz de Camões

Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
que não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.

Luís Vaz de Camões
(Representação de autoria desconhecida)
(1524-1580)

Referência:

NEJAR, Carlos. Luiz Vaz de Camões. In: MORICONI, Italo (Organização, introdução e referências bibliográficas). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2001. p. 143-144.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Wilfred Owen - Dulce et Decorum Est

Neste poema escrito por Owen aos 24 anos, depois de haver passado por experiências lutando em trincheiras no norte da França, durante a 1GM, o militar lança o seu sarcasmo contra a máxima extraída a uma das odes do poeta romano Horácio: morrer pelo próprio país, em meio a um conflito bélico, pode ser tudo, menos belo e honroso, ainda mais numa guerra durante a qual 17 milhões de soldados e civis perderam a vida.

O pior é que, enquanto se recuperava de ferimentos, as palavras do poeta parecem vaticinar o que ainda estaria por vir: retornando ao campo de batalha, o próprio autor morreu em ação, uma semana antes do armistício de 11.11.1918, que assinalou o fim das hostilidades.

Mas ficou a mensagem aos jovens: não se deixem enganar por políticos imorais, nem por suas pernósticas propagandas, pois o recurso ao patriotismo não passa de uma farsa ridícula para acobertar interesses escusos, distantes dos interesses do bem-estar da maioria.

J.A.R. – H.C.

Wilfred Owen
(1893-1918)

Dulce et Decorum Est

Bent double, like old beggars under sacks,
Knock-kneed, coughing like hags, we cursed
through sludge,
Till on the haunting flares we turned our backs,
And towards our distant rest began to trudge.
Men marched asleep. Many had lost their boots,
But limped on, blood-shod. All went lame, all blind;
Drunk with fatigue; deaf even to the hoots
Of gas-shells dropping softly behind.

Gas! Gas! Quick, boys!– An ecstasy of fumbling,
Fitting the clumsy helmets just in time,
But someone still was yelling out and stumbling
And floundering like a man in fire or lime.–
Dim through the misty panes and thick green light,
As under a green sea, I saw him drowning.

In all my dreams before my helpless sight
He plunges at me, guttering, choking, drowning.

If in some smothering dreams, you too could pace
Behind the wagon that we flung him in,
And watch the white eyes writhing in his face,
His hanging face, like a devil’s sick of sin;
If you could hear, at every jolt, the blood
Come gargling from the froth-corrupted lungs,
Bitter as the cud
Of vile, incurable sores on innocent tongues,–
My friend, you would not tell with such high zest
To children ardent for some desperate glory,
The old Lie: Dulce et decorum est
Pro patria mori.

Os Horrores da Guerra
(Peter Paul Rubens: pintor flamengo)

Dulce et Decorum Est

Dobrados em dois, como velhos mendigos sob sacos,
As pernas a bambear, tossindo como bruxas, praguejávamos
através do lodo,
Até que diante de fulgores inquietantes déssemos as costas,
E começássemos a nos arrastar rumo ao nosso distante refúgio.
Os homens marchavam sonolentos. Muitos haviam perdido
suas botas,
Mas seguiam claudicantes, cobertos de sangue. Todos trôpegos
e cegos caminhavam;
Ébrios de cansaço; surdos até mesmo aos silvos
Dos projéteis de gás caindo suavemente à retaguarda.

Gás! Gás! Rápido, rapazes! Num arroubo atarantado,
Toscos capacetes são ajustados a tempo,
Mas alguém ainda grita e tropeça
E debate-se como se estivesse imerso em fogo ou visgo.
Tenuemente, através da viseira embaçada e da densa luz verde,
Eu o vi afogar-se naquele turvo mar esverdeado.

Em todos os meus sonhos, diante do meu olhar indefeso,
Precipita-se até mim, esvaindo, sufocando, afogando.

Se em alguns sonhos asfixiantes também pudesses seguir
Atrás do vagão onde o estendemos,
Para observares em sua face os olhos brancos convulsionados,
Seu rosto pendente, como um demônio farto de pecado;
Se pudesses escutar, a cada solavanco, o gorgolejo
Do sangue a sair dos pulmões corrompidos pela espuma,
Acre como o remoer
De infames, incuráveis pústulas em línguas inocentes;
Amigo meu, não dirias com tanto entusiasmo
Às crianças, ardentes por uma desesperada glória,
A velha Mentira: Dulce et decorum est
Pro patria mori. (*)

Nota:

(*). “Doce e honroso é morrer por seu país”.

Referência:

OWEN, Vilfred. Dulce et decorum est. In: __________. The poems of Wilfred Owen. Edited with a memoir and notes by Edmund Blunden. 1st. ed., 3rd. reimp. London, EM: Chatto & Windus, 1960. p. 66.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Oscar Wilde - À Minha Mulher

Wilde formula um poema-dedicatória de seu livro de “Poemas” à sua amada, metaforizando cada poema em uma pétala caída sobre as páginas, soprada pelo amor até que pouse nos cabelos da esposa. Ao sobrevir o inverno sombrio, o vento frio arrasará qualquer vestígio de todos os amores sobre a terra, mas as pétalas em questão serão capazes de evocar o jardim em flor.

O escritor-poeta, com pródiga habilidade mental, transmuta o ordinário e o mundano no alegórico e no sublime: a primavera e o verão são o tempo em que as flores se manifestam, mas no outono e no inverno apenas suas pétalas remanescem na cabeça da esposa – e Wilde espera que ela faça alguns de seus poemas penetrarem-lhe a mente.

J.A.R. – H.C.

Oscar Wilde
(1854-1900)

To my Wife
With a copy of my “Poems”

I can write no stately proem
As a prelude to my lay ;
From a poet to a poem
I would dare to say.

For if o f these fallen petals
One to you seem fair,
Love will waft it till it settles
On your hair.

And when wind and winter harden
All the loveless land,
It will whisper of the garden,
You will understand.

Sra. Carriça com Cizirão e Ninho
(Jeanne Illenye: artista norte-americana)

À Minha Mulher
Com um exemplar de meus “Poemas”

Escrever não posso um proêmio imponente
Como um prelúdio ao meu cantar;
“De um poeta a um poema”
Só a dizer me atreveria.

Pois se dessas pétalas caídas
Alguma te parecer bela,
O amor a soprará até que pouse
Nos teus cabelos.

E quando o vento e o inverno devastarem
A terra toda sem amor,
Ela há de falar, do jardim, em surdina,
E tu compreenderás.

Referências:

Em Inglês

WILDE, Oscar. To my wife. In: __________. Poems: with the ballad of reading gaol. 21st. ed. London, EN: Methuen & Co Ltd., 1951. p. 137.

Em Português

WILDE, Oscar. À minha mulher. Tradução de Oscar Mendes. In: __________. Obra completa: volume único. 1. ed.; 7. reimp. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 2007. p. 947-948. (“Biblioteca de Autores Universais”)

terça-feira, 27 de agosto de 2019

João-Francisco Ferreira - A Viagem

Incógnito é o ser a quem se dirige o ente lírico neste poema: ele não é nomeado, mas talvez o poeta esteja a se referir a Deus ou a algum ente com o dom de lançar linhas de força à volta dos homens, os quais, por sua vez, a ele regressam, ao conhecê-lo no correr dos anos, depois de desvendar-lhe o labirinto, ou presumivelmente nos umbrais da morte.

De fato, é uma viagem imaginária, para a qual não estão preparados todos os seres humanos, alguns submersos no vício – a bebida e o cigarro –, navegando pela escuridão da noite. Outros tantos já perceberam a região destinatária do “céu fatal”, onde rebrilham as esperanças nas cercanias das portas do sol, à espera da glória de uma manhã triunfante.

J.A.R. – H.C.

João-Francisco Ferreira
(n. 1925)

A Viagem

Tua face lacera a biografia dos homens.
Não querem teu olhar além das ressacas,
aspirando a fome ébria dos pássaros...

Não levantam o braço para que a vida seja outra.
Ficam silenciosos. E quietos. Adormecem.
Não suportam a face que é lágrima duradoura,
face sem máscara, fé sem esperança.

Ninguém fala. Mas vê: eles recuam,
secou-lhes a bebida, a lógica, o fumo da conversa.
Sentem que és demais.

Temem-te o incêndio irreprimível,
não querem tua face, teu pranto,
tua visão de cárceres derramados.

Abraçam-te na noite.
O ar das cordilheiras toca as árvores.

É teu amigo que fala,
o que repete as sílabas da noite, as pegadas do vento
e reduz para ti o mundo.
Sua voz: a criança que és encontrando-se a si mesma.
É a fabula, a luz do remoto,
alguém ferido nas rochas.

O amigo sabe teu rosto,
tua canção, a viagem,
tua esperança às portas do sol.

É o que estende a mão como a própria vida.
O imemorial adivinhando-te a febre,
teu ser que é um eco às constelações imóveis.
O amigo é aquele que para tua sede reinventa a mesma fonte;
o que penetra teu céu fatal
e ressoa ao amor que te fez pobre e impossível.
O que parte para desvendar teu labirinto,
a glória de um dia amanheceres.

Aconchego Distante
(Carrie Jacobson: pintora norte-americana)

Referência:

FERREIRA, João-Francisco. A viagem. In: CAMPOS, Milton de Godoy (Ed.). Antologia poética da geração de 45. 1ª série. São Paulo, SP: Clube de Poesia, 1966. p. 192-193.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

E. E. Cummings - os rapazes de quem falo não são refinados

À primeira vista, se outra não for a interpretação mais convincente, Cummings dirige-se à turma jovem de cabeça vazia, que sob efeito imediato dos níveis elevados de testosterona, quer fazer valer, a todo custo, o prazer proporcionado por outras extremidades mais ao sul (rs).

Se tal constatação limita-se a pouco mais do que passada a adolescência, vá lá. Mas viver na luxúria e em ritmo dissoluto pela vida inteira não se mostra conforme à temperança. E mais: ainda que tal comportamento se circunscreva a situações excepcionais, como em tempos de guerra, não se revela razoável levar à frente uma camaradagem tão ríspida e estulta. Melhor pôr os neurônios da cabeça de cima para funcionar!

J.A.R. – H.C.

E. E. Cummings
(1894-1962)

the boys i mean are not refined

the boys i mean are not refined
they go with girls who buck and bite
they do not give a fuck for luck
they hump them thirteen times a night

one hangs a hat upon her tit
one carves a cross in her behind
they do not give a shit for wit
the boys i mean are not refined

they come with girls who bite and buck
who cannot read and cannot write
who laugh like they would fall apart
and masturbate with dynamite

the boys i mean are not refined
they cannot chat of that and this
they do not give a fart for art
they kill like you would take a piss

they speak whatever’s on their mind
they do whatever’s in their pants
the boys i mean are not refined
they shake the mountains when they dance

O Anjo Negro
(Ruslan Sabirov: pintor russo)

os rapazes de quem falo não são refinados

os rapazes de quem falo não são refinados
saem com garotas que atacam e mordem
a eles pouco importa a sorte
montam-nas treze vezes por noite

este pende um chapéu sobre uma teta
aquele grava uma cruz em seu traseiro
a eles pouco importa o intelecto
os rapazes de quem falo não são refinados

andam com garotas que atacam e mordem
incapazes de ler tampouco de escrever
que riem como se se desfizessem
e se masturbam com dinamite

os rapazes de quem falo não são refinados
não conseguem conversar sobre isto ou aquilo
a arte lhes vale menos que um miasma
matam tão sem custo quanto urinar você poderia

eles dizem tudo o que lhes passa pela mente
fazem tudo o que lhes incita o que há sob as cuecas
os rapazes de quem falo não são refinados
quando dançam fazem chacoalhar as montanhas

Referência:

CUMMINGS, E. E. the boys i mean are not refined. In: __________. Complete poems: 1904-1962. Revised, corrected and expanded edition containing all the published poetry. Edited by George J. Firmage. 7. ed. New York, NY: Liveright, 1991. p. 427.

domingo, 25 de agosto de 2019

George Herbert - Virtude

O poeta anglo-galês, também sacerdote, depois de descrever, nas três primeiras estrofes do poema abaixo, como todas as coisas – e, em particular, a natureza – são obscurecidas pela constante presença da morte, sugere, na derradeira estrofe, que a única coisa não limitada pelo passamento é a alma plena de virtudes.

A eternidade viria, assim, às gentes piedosas, presumivelmente cristãs, que se estreitam no relacionamento com Deus. Ter-se-ia, nesse plano, não uma manifestação tangível da natureza, mas a essência intangível de uma “alma doce e virtuosa”. Isto, claro, em conclusão a uma exposição não afeita a argumentos – como, por exemplo, no diálogo socrático “Meno”, legado por Platão –, senão a uma sucessão de imagens bem arregimentadas.

J.A.R. – H.C.

George Herbert
(1593-1633)

Virtue

Sweet day, so cool, so calm, so bright,
The bridal of the earth and sky;
The dew shall weep thy fall to-night,
For thou must die.

Sweet rose, whose hue angry and brave
Bids the rash gazer wipe his eye;
Thy root is ever in its grave,
And thou must die.

Sweet spring, full of sweet days and roses,
A box where sweets compacted lie;
My music shows ye have your closes,
And all must die.

Only a sweet and virtuous soul,
Like season’d timber, never gives;
But though the whole world turn to coal,
Then chiefly lives.

A Eterna Busca pela Felicidade
(Geeta Biswas: pintora indiana)

Virtude

Doce dia, tão fresco, tão calmo, tão luminoso,
O conúbio entre a terra e o céu;
O orvalho pranteará nesta noite o teu declínio,
Pois haverás de morrer.

Doce rosa, cujo colorido austero e elegante
Traz lágrimas aos olhos do admirador passageiro:
A tua raiz permanecerá na terra,
Mas tu haverás de morrer.

Doce primavera, cheia de dias suaves e de rosas,
Um repertório de doçuras condensadas;
Meu canto mostra que terás o teu final,
E tudo haverá de morrer.

Somente uma alma doce e virtuosa,
Qual madeira sazonada, perdura sempre;
Enquanto o mundo todo se converte em carvão,
Ela sobrevive plenamente.

Referência:

HERBERT, George. Virtue / Virtude. Tradução de Angela Gasperin. MINER, Earl. Poética comparada: um ensaio intercultural sobre teoria da literatura. Tradução de Angela Gasperin. Brasília, DF: Editora da UnB, 1996. Em inglês: p. 140; em português: p. 139-140. 

sábado, 24 de agosto de 2019

Homero Homem - Lamento do brasileiro carnívoro empobrecido

A visão de um garoto que se tornou maduro vendo as reses da fazenda onde os seus ascendentes trabalhavam, retirando leite e carne para abastar não a casa dos que a eles se assemelham – “os carnívoros empobrecidos” , senão outras classes sociais capazes de adquirir tais produtos, depois que o preço foi multiplicado “n” vezes acima do custo incorrido: tal é a matéria do poema de hoje.

São as dificuldades por que passa o trabalhador “barnabé”, mal pago e, por isso mesmo, vivendo em desconforto, carente de oportunidades para avançar com os seus na vida, porque sem recursos para a instrução, neste país que tem uma das mais pernósticas distribuições de renda do mundo.

J.A.R. – H.C.

Homero Homem
(1921-1991)

Lamento do brasileiro
carnívoro empobrecido

Também já fui menino de fazenda
muito mais dado ao leite que ao filé.
Vovô, senhor de engenho e muita cria,
comprava o boi por seiscentas pratas.
Ele vinha mugindo, boi em pé.

Depois virei garoto da cidade
amoroso de fruta e picolé.
Papai agricultor empobrecido
pelo preço do boi em tempos idos
comprava a manta gorda de jabá
que o burrinho ensinado transportava
da feira à casa grande de arrabalde
a carga acomodada em caçuá.

Hoje operário simples barnabé
trabalhador no cabo de uma enxada
apanhador na safra de café
a troco do salário que mal chega
para a média com leite e derivados
da fome do filhinho e da mulher,
pelo preço do boi antigamente
compro entrecosto e abinha de filé.
Ele vem enlatado, sem mugir
boi da swift, rês de pouca fé.

Neste país de fome & frigorífico
de pastagem que tem mas vai faltar
é preciso mudar já não direi
o regime do gado mas da lei
que engorda o boi em pé e sua grei.

Alimentando um Faminto
(Michael Sweerts: pintor flamengo)

Referência:

HOMEM, Homero. Lamento do brasileiro carnívoro empobrecido. In: SANT’ANNA, Affonso Romano de et al. Violão de rua. V. III. Rio de Janeiro, GB: Civilização Brasileira, 1963. p. 78-79. (“Cadernos do Povo Brasileiro”; Volume Extra)