Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de julho de 2021

Manoel Botelho de Oliveira - Aos maus juízes

O poeta barroco baiano parece, com um hiato de séculos, aludir a certa judicatura de Pindorama nos dias presentes, que, distanciando-se daquilo que se poderia denominar por autêntica justiça, resolvera agir como explícitas intenções políticas, como restou demonstrado pelas conversas trazidas à ciência de todos pelo ‘hacker’ Walter Delgatti Neto.

A própria Suprema Corte do país, que “embarcara” nos remates sentenciados pela turma de Curitiba, depois que as aludidas conversas vieram à tona, resolveu voltar atrás – à exceção de alguns de seus ministros –, porque por demais acintosas as infrações praticadas contra o Estado de Direito, seus valores e princípios constitucionais.

J.A.R. – H.C.

Manoel Botelho de Oliveira

(1636-1711)

 

Aos maus juízes

 

Que julgas, ó ministro de justiça?

Por que fazes das leis arbítrio errado?

Cuidas que dás sentença sem pecado,

Sendo que algum respeito mais te atiça:

Para obrar os enganos da injustiça?

Bem que teu peito vive confiado,

O entendimento tens todo arrastado

Por amor, ou por ódio, ou por cobiça.

Se tens amor, julgaste o que te manda;

Se tens ódio, no inferno tens o pleito,

Se tens cobiça, é bárbara, execranda.

Oh miséria fatal de todo o peito!

Que não basta o direito da demanda,

Se o Julgador te nega esse direito.

 

Jael e Sísera

(Artemisia Gentileschi: pintora italiana)


Referência:

OLIVEIRA, Manoel Botelho de. Aos maus juízes. In: VARNHAGEN, F. A. (Organização e Ensaio). Florilégio da poesia brasileira: coleção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles, tudo precedido de um ensaio histórico sobre as letras no Brasil. Tomo I. Lisboa, PT: Imprensa Nacional, 1850. p. 146.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Umberto Saba - Felicidade

Com uma linguagem clara e simples, provavelmente já avançado em idade – e os seus consequentes desencantos –, Saba redige estas linhas, lídima parábola para o existir humano: se a juventude e boa parte da idade adulta transcorrem sob o peso das responsabilidades, chega um momento, já quase no ocaso, em que as coisas se tornam menos pesarosas.

E então sobrevêm a poesia, as digressões e os entretenimentos, algo mais próximo da felicidade – ou mais distante da infelicidade, tal como se queira! –, tornando nossos passos “mais leves”, permitindo, assim, que assumamos a face da bondade e dissipemos toda aquela dor que, um dia, teimou em nos submeter às agruras de uma vida molesta e cansativa.

J.A.R. – H.C.

 

Umberto Saba

(1883-1957)

 

Felicità

 

La giovanezza cupida di pesi

porge spontanea al carico le spalle.

Non regge. Piange di malinconia.

 

Vagabondaggio, evasione, poesia,

cari prodigi sul tardi! Sul tardi

l’aria si affina ed i passi si fanno

leggeri.

Oggi è il meglio di ieri,

se non è ancora la felicità.

 

Assumeremo un giorno la bontà

del suo volto, vedremo alcuno sciogliere

come un fumo il suo inutile dolore.

 

In: “Il Canzoniere” (1945)

 

San Giorgio Maggiore ao Entardecer

(Claude Monet: pintor francês)

 

Felicidade

 

A juventude ávida por fardos

inclina espontaneamente os ombros à carga.

Não resiste. Chora de melancolia.

 

Vadiagem, evasão, poesia,

caros prodígios tardios! Ao fim do dia,

o ar se afina e os passos tornam-se

mais leves.

Hoje é melhor do que ontem,

mesmo que ainda não seja a felicidade.

 

Um dia assumiremos a bondade

de seu rosto, veremos alguns derreterem

sua dor inútil como uma fumaça.

 

Em: “O Cancioneiro” (1945)


Referência:

SABA, Umberto. Felicità. In: PAYNE, Roberta L. (Edition and Translation). A selection of modern italian poetry in translation. A bilingual edition: Italian x English. Montreal & Kingston, CA: McGill-Queen’s University Press, 2004. p. 100 and 102.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Jean Cocteau - Se amas, pobre criança

O falante dirige-se a uma criança – real ou, talvez, até mesmo assim percebida, ainda que não necessariamente um infante no sentido estrito da palavra –, fazendo-lhe observações sobre a conduta que leva ao amor, resultado inopinado de leis próprias de gravitação capazes de fazer os corpos – quer astros quer simples humanos – atraírem-se.

O amor tanto inebria o(a) amante, que este já não consegue sopesar com precisão sobre aquilo que está à volta – livros, paisagens, céus da Ásia: tem os olhos direcionados tão apenas ao objeto de sua afeição – o(a) amado(a) – e o coração como que anestesiado, sujeitando-se a descer um elevador depressa demais, expondo-se a percalços que a razão, por bem ou por mal, desconsidera.

J.A.R. – H.C.

 

Jean Cocteau

(1889-1963)

 

Si tu aimes mon pauvre enfant

 

Si tu aimes mon pauvre enfant,

Ah! si tu aimes!

Il ne faut pas en avoir peur.

C’est un inéfable désastre.

Il y a un mystérieux système

Et des lois, et des influences,

Pour la gravitation des cœurs

Et la gravitation des astres.

On était là tranquillement

Sans penser à ce que l’on évite,

Et puis tout à coup on ne peut plus,

On est à chaque heure du jour

Comme si tu descends très vite

En ascenseur:

Et c’est l’amour.

Il n’y a plus de livres, de paysages,

De désir des ciels d’Asie,

Il n’y a plus qu’un seul visage

Auquel le cœur s’anesthésie,

Et rien autour.

 

Templo de Angkor Wat:

Camboja, Sudeste da Ásia

(Autoria não identificada)

 

Se amas, pobre criança

 

Se amas, pobre criança,

ah! se tu amas?

Não tenhas medo, não:

é inefável desastre.

Há um misterioso sistema,

e leis e influências

na gravitação das almas

e na gravitação dos astros.

Estás assim, tranquilamente,

sem pensar no que evitas,

e de repente, já não aguentas mais,

é como se a cada instante

descesses bem depressa

de elevador:

e é o amor.

Nem livros mais, nem paisagens,

nem desejos de céus da Ásia.

Sobra aquele rosto – aquele

ao qual se anestesia o coração.

E nada em torno.


Referências:

Em Francês

COCTEAU, Jean. Si tu aimes mon pauvre enfant. Disponível neste endereço. Acesso em: 25 jul. 2021. 

Em Português

COCTEAU, Jean. Se amas, pobre criança. Tradução de Sérgio Milliet. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e Notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 426-427.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Henriqueta Lisboa - Maturidade

Havendo chegado à maturidade, a poetisa mineira revolve os sentimentos que a temporada lhe suscita – feito amêndoas polpudas e macias, de sabor doce-amargo, vale dizer, como as experiências que contam a história de uma vida , ponto de culminância a partir do qual as encostas, pouco a pouco, perdem altitude, até que desvaneçam em contato com o mar.

A voz lírica sente o peso desse momento, no qual o velame acha-se ancorado ao porto, no aguardo de uma jornada rumo à eternidade: o instante mesmo do apogeu é o indicativo a demarcar um quartel finito para nossos corpos físicos, nossas humanas pretensões, sem que haja cesuras na seta irretornável do tempo.

J.A.R. – H.C.

 

Henriqueta Lisboa

(1901-1985)

 

Maturidade

 

Maturidade, sinto-te na polpa

dos dedos: abundante e macia.

Saturada de sábias,

doce-amargas amêndoas.

 

És o tálamo para a morte,

o velame no porto.

 

Sob teu musgo, a pedra.

O silêncio em teu seio é prata

a sofrer o lavor

minucioso do tempo.

 

À tua sombra de pomar

ressoam passos do eterno

entre folhas: do eterno.

 

Ó pesado momento,

ó bojo cálido!

 

Luz sobre o musgo

(Egidijus Godliauskas: artista lituano)


Referência:

LISBOA, Henriqueta. Maturidade. In: FIGUEIREDO, José Valle de (Compilador). Antologia da poesia brasileira. Lisboa, PT: Editorial Verbo, s/d [197?]. p. 164.

terça-feira, 27 de julho de 2021

Clarence Major - O Que Buscávamos

Na primeira metade deste poema, a voz lírica dá-nos ciência de que uma resposta pela qual todos estavam à procura não se tornou viável, pois as pessoas consultadas ou os meios empregados não se mostraram hábeis em provê-la: sequer ao leitor é dada a exata explicação sobre em que consistiria tal resposta, embora se possam levantar hipóteses.

Isto porque, na segunda metade, são declinadas inúmeras mudanças ocorridas na natureza, pelo efeito de uma estação que mais parece a primavera; tudo floresce e frutifica em diversos locais da terra – Austrália, China, Canadá –, pelo que se deduz que o sentido maior para a existência não é mais que fruir cada momento em sua beleza, gratulando-se por estar vivo e poder participar desse átimo da História. O que soçobra são as “misérias da filosofia”.

J.A.R. – H.C.

 

Clarence Major

(n. 1936)

 

What We Wanted

 

The man in the white tunic didn’t have the answer.

In the wilderness we dreamed of finding it.

The girl feeding pigeons did not have it.

The fortune-teller didn’t have the answer.

The dooms-day rider didn’t have it.

The trusted men opening the seal didn’t find the answer.

We probably blew our trumpets all around it.

The artist painted herself holding a mirror.

She tried to find it in her pose – deflected.

The keepers of the dark didn’t have it.

The unknown man didn’t have the answer.

Attendees at the feast didn’t have it.

The revolutionary didn’t find it in bloodshed.

The birth of Venus offered no clue to it.

It was not in the mocking bird’s crazy song.

The people on the dance floor couldn’t find it.

The three women at the gate were clueless.

Even their flirty smiles didn’t help.

Medusa with a head full of snakes didn’t have the answer!

Yet poppies went on blooming, blooming, blooming.

In lilac season the sweet-smelling earth filled the ar.

Marigolds spreading across the land!

In Australia the great myrtles were standing tall.

In western China the cherry trees were blooming.

With its scaly bark the white oak of Quebec sparkled.

Junipers, silver furs, beech and lime had their turn.

The camellias of the evergreen were glowing red in sunlight.

We praised forget-me-nots in upper windows!

The lilies and the larkspur were blooming wild!

And we praised the persimmon trees with their possum wood!

 

O Nascimento de Vênus

(Sandro Botticelli: pintor italiano)

 

O Que Buscávamos

 

O homem da túnica branca não tinha a resposta.

No deserto, sonhamos em encontrá-la.

A menina que alimentava os pombos não a tinha.

A cartomante não tinha a resposta.

Os homens de confiança que desprenderam o selo

não encontraram a resposta.

Provavelmente sopramos nossas trombetas à sua volta.

A artista se pintou segurando um espelho.

Tentou encontrá-la em sua pose – defletida.

Os guardiões das trevas não a tinham.

O homem desconhecido não tinha a resposta.

Os participantes no banquete não a tinham.

O revolucionário não a encontrou no banho de sangue.

O nascimento de Vênus não ofereceu qualquer pista

a respeito.

Não estava ela no canto louco da ave zombeteira.

As pessoas na pista de dança não conseguiam encontrá-la.

As três mulheres ao portão estavam sem pistas.

Nem mesmo ajudaram os seus sorrisos sedutores.

A Medusa, com a cabeça cheia de serpentes, não tinha

a resposta!

No entanto, as papoulas continuaram a florir, a florir,

a florir.

Na estação de floração dos lilases, o ar cobriu-se do aroma

doce do solo.

As calêndulas espalharam-se por toda a terra!

Na Austrália, as grandes murtas erguiam-se de pé.

No oeste da China, as cerejeiras estavam em flor.

Com sua casca escamosa, o carvalho branco de Québec

cintilava.

Zimbros, abetos prateados, faias e tílias tiveram a sua vez.

As camélias das sempre-verdes brilhavam vermelhas

à luz do sol.

Entoamos loas aos miosótis nas janelas superiores!

Os lírios e os delfínios estavam a florescer selvagens!

E exaltamos os diospireiros, fartos dos diletos frutos

dos gambás!


Referência:

MAJOR, Clarence. What we wanted. In: MESSERLI, Douglas (Edition & Note). The pip anthology of world poetry of the 21st century. Volume 10: Selected contemporary american poets. København, DK & Los Angeles, CA: Green Integer, 2017. p. 21. Disponível neste endereço. Acesso em: 28 jun. 2021.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Julio Barrenechea - Reunião das Estrelas

A voz lírica, neste poema do poeta e diplomata chileno, enceta um hipotético diálogo com as estrelas, convidando-as a entrar em seu dormitório, enquanto, ainda insone, divaga sobre os parentes ou conhecidos que, desaparecidos, cada uma delas representaria: por que não se habilitariam as estrelas a porem-se em linha, como nos letreiros de anúncios, para que o falante pudesse nomeá-los um a um?! – pergunta-se.

De fato, não se trata de um diálogo, senão de um monólogo entre absorto e gracioso, vivenciado pelo prolator da mensagem no isolamento do seu quarto, pouco antes de cair nos braços de Morfeu: tudo o que imagina o sujeito poderia também ser matéria de um sonho que, no fluxo das próximas horas, certamente lhe sobrevirá durante o repouso. Afinal, tantas são as metáforas de que são feitos os sonhos!

J.A.R. – H.C.

 

Julio Barrenechea

(1910-1979)

 

Tertulia con las Estrellas

 

Adelante.

Adelante.

Pasen ustedes señoritas estrellas.

Si se han de estar toda la noche asomadas a mi ventana,

mejor pasen adentro

si algo les interesa.

Pasen no más sin miedo,

que si alguien me pregunta qué es lo que hay en mi cuarto,

yo le diré que son luciérnagas.

 

Perdón que las reciba en ésta bata

dé soledad gastada.

Es mi traje de casa.

 

No señoritas,

no es un trozo de luna,

Este es mi lecho,

cuya blancura rige mi madre.

 

Ustedes que se miran en las aguas tendidas,

no vayan a asustarse si se hallan verticales

al verse en el espejo del ropero.

Ni vayan a creer que yo fabrico estrellas

porque he encéndido un fósforo.

 

También les interesa el lavatorio?

Pues bien, es ahí donde

mañana tras mañana,

dejo caer al agua

mis caras trasnochadas.

 

Ya deben irse?

Bueno, Hasta otra noche,

Pero antes que se vayan,

por qué no se acomodan como letras de avisos luminosos,

mientras les voy dictando nombres desaparecidos?

 

Después,

para que arriba no les sientan la hora de llegada,

pregúntenle a mi sueño

como se entró en puntillas por mis ojos cerrados.


Constelações: estrela da manhã

(Joan Miró: pintor espanhol)

 

Reunião das Estrelas

 

Entrem.

Entrem.

Queiram entrar, senhoritas estrelas.

Se hão de ficar a noite inteira espiando pela janela

é melhor que entrem

se alguma coisa lhes interessa.

Podem entrar sem receio.

Se alguém perguntar o que é isto no meu quarto

direi que são vaga-lumes.

 

Perdoem recebê-las neste traje

gasto na solidão.

É meu traje de casa.

 

Não, senhoritas,

isto não é um pedaço de lua,

é minha cama

cuja brancura é mantida por minha mãe.

 

Vocês, habituadas a se mirarem em águas planas,

não se assustem se se virem verticais

no espelho do guarda-roupa.

Quando eu acender um fósforo

não pensem que fabrico estrelas.

 

O lavatório também lhes interessa?

Pois bem, é aí

que todas as manhãs

mergulho n’água

a cara tresnoitada.

 

Oh! já se vão?

Bem. Até outra noite.

Mas antes de irem embora

porque não se alinham como letras de anúncios luminosos

enquanto lhes vou ditando nomes desaparecidos?

 

Depois,

para que lá em cima não notem a hora da chegada,

perguntem ao meu sonho

como entrou de mansinho em meus olhos fechados.


Referências:

Em Espanhol

BARRENECHEA, Julio. Tertulia con las estrelas. In: __________. El mitin de las mariposas: poemas. [Santiago, CL]: Editorial Minarete, 1930. p. 13-14. Disponível neste endereço. Acesso em: 18 jul. 2021.

Em Português

BARRENECHEA, Julio. Reunião das estrelas. Tradução de Dante Milano. In: LISBOA, Henriqueta (Org.). Antologia escolar de poemas para a juventude. Rio de Janeiro, RJ: Ediouro - Tecnoprint, 1981. p. 103-104.