Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Dennis O’Driscoll - Animais Experimentais

O falante é daqueles que, em laboratório, tem o poder de vida e de morte sobre os animais utilizados em experiências científicas: mostra ele certa sensibilidade em relação ao que possa suceder a tais seres sencientes – coelhos, gatos, cães, leitões etc. –, “em nome de toda a beleza do mundo”, “em nome de toda a tristeza do mundo”. Mas tudo não passa apenas de alguns segundos, após os quais logo alguém irrompe a impor ordem de matança imediata (quando não, o próprio falante é que se autoimpõe a prontidão do ato).

 

Em tempo: a legislação sobre o emprego de animais em experiências de laboratório tem mudado bastante em muitos países, quer em razão da quantidade exorbitante de animais empregados rotineiramente em tais experimentos – estima-se algo da ordem de duzentos milhões –, quer porque grande parte da investigação, então levada a efeito, produz dor e mal-estar aos animais, sem qualquer resultado ou conhecimento aplicável em benefício dos seres humanos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Dennis O’Driscoll

(1954-2012)

 

Experimental Animals

(after Miroslav Holub)

 

It’s much cushier when it’s raining rabbits

than cats and dogs. The animals for experiment

should not betray too much intelligence.

It grows unnerving to watch their actions mimic yours;

terror and horror you can empathise with.

 

But, for real heartbreak, take a newborn pig.

Fantastically ugly; possessing nothing

and desiring nothing except its swig of milk;

legs warping under all that weight

of uselessness, stupidity and snout.

 

When I must kill a piglet, I hesitate a while.

For about five or six seconds.

In the name of all the beauty of the world.

In the name of all the sadness of the world.

‘What’s keeping you?’, someone bursts in then.

 

Or I burst in on myself.

 

Experimento com um Pássaro

numa Bomba de Ar

(Joseph Wright of Derby: pintor inglês)

 

Animais Experimentais

(ao modo de Miroslav Holub)

 

É bem mais cômodo quando se tem um monte de coelhos

do que cães e gatos. Os animais para experimentos

não devem revelar demasiada inteligência.

Torna-se inquietante ver as ações deles imitarem as tuas;

terror e horror com os quais possas te identificar.

 

Mas, para um autêntico pesar, tome um porco recém-nascido.

Fantasticamente disforme; sem possuir nada

e sem nada desejar, exceto o seu gole de leite;

as pernas empenadas sob todo aquele peso

de inutilidade, estupidez e focinho.

 

Quando tenho que matar um leitão, hesito um pouco.

Durante uns cinco ou seis segundos.

Em nome de toda a beleza do mundo.

Em nome de toda a tristeza do mundo.

‘O que é que está a te deter?’, logo alguém esbraveja.

 

Ou a mim mesmo esbravejo.

 

Referência:

 

O’DRISCOLL, Dennis. Experimental animals. In: ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st. ed. New York, NY: Miramax Books, 2003. p. 218-219.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Paul Fleming - Meditação sobre o Tempo

Na sucessão contínua e invariável de instantes, o tempo a tudo submete, o ser humano aí incluso – o tempo ligado à eternidade, o ser humano à finitude. Ou, por outra, diria que somos “habitantes do tempo”, como o afirma Heidegger: temos a consciência de um tempo – fixo, imutável, cíclico –, contra o qual se revela patente nossa impotência.

 

As Parcas fiam e desfiam o tempo e a vida, permitindo-nos conceber ou antecipar a nossa própria morte: presente, passado e futuro são estações pelas quais passamos quando em jornada pelas areias desse “tirano sangrento” (1). Mas deixe estar que: “A eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo.”! (rs) (2)

 

Outra associação que sempre me vem à mente quando se espreita as ações do tempo sobre nossas breves existências é a belíssima letra da melodia “Resposta ao Tempo” (1998), de autoria de Cristóvão Bastos e Aldir Blanc, que o internauta poderá aqui escutar, na voz sempre marcante de Nana Caimmy:

 

 

J.A.R. – H.C.

 

Paul Fleming

(1609-1640)

 

Gedanken über der Zeit

 

Ihr lebet in der Zeit und kennt doch keine Zeit;

So wißt, ihr Menschen, nicht von und in was ihr seid.

Diß wißt ihr, daß ihr seid in einer Zeit geboren

Und daß ihr werdet auch in einer Zeit verloren.

Was aber war die Zeit, die euch in sich gebracht?

Und was wird diese sein, die euch zu nichts mehr macht?

 

Die Zeit ist was und nichts, der Mensch in gleichem Falle,

Doch was dasselbe was und nichts sei, zweifeln alle.

Die Zeit, die stirbt in sich und zeugt sich auch aus sich.

Diß kömmt aus mir und dir, von dem du bist und ich.

Der Mensch ist in der Zeit; sie ist in ihm ingleichen,

Doch aber muß der Mensch, wenn sie noch bleibet, weichen.

 

Die Zeit ist, was ihr seid, und ihr seid, was die Zeit,

Nur daß ihr wen’ger noch, als was die Zeit ist, seid.

Ach daß doch jene Zeit, die ohne Zeit ist, käme

Und uns aus dieser Zeit in ihre Zeiten nähme,

Und aus uns selbsten uns, daß wir gleich könnten sein,

Wie der itzt jener Zeit, die keine Zeit geht ein!

 

O Nascimento do Tempo

(Alex Levin: artista israelo-ucraniano)

 

Meditação sobre o Tempo

 

Vives no Tempo sem saber o que é o Tempo;

Ignoras de onde vens e no que te deténs.

Sabes apenas que num Tempo foste feito

E que num outro Tempo ainda serás desfeito.

Mas o que foi o Tempo que te trouxe incluso?

E o que há de ser aquele que te faz sem uso?

 

O Tempo é sim e não, o homem se multiplica,

Mas o que este Sim-e-Não ninguém explica.

O Tempo morre em si e a si mesmo renasce.

O de que tu e eu viemos, de nós mesmos nasce.

O homem está no Tempo e o Tempo está no homem,

Mas o Tempo resiste enquanto o homem some.

 

O Tempo é o que és e és o que é o Tempo,

Embora tenha menos do que o Tempo tem.

Ah, se esse outro Tempo, sem Tempo, chegasse

E a nós, de nosso Tempo, esse Tempo arrancasse,

E de nós mesmos, nós, para sermos também

Como esse Tempo, que nenhum Tempo contém.

 

Notas:

 

(1). Expressão empregada por William Shakespeare (1564-1616), em seu soneto de nº 16, para caracterizar o tempo.

 

(2). Conforme a perspectiva imaginosa de William Blake (1757-1827), em “O Matrimônio do Céu e do Inferno”.

 

Referência:

 

FLEMING, Paul. Gedanken über der zeit / Meditação sobre o tempo. Tradução de Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto de (Tradução e Introdução). Irmãos germanos: poemas traduzidos de Paul Fleming et alii. Florianópolis, SC: Editora Noa Noa, 1992. Em alemão: p. 12; em português: p. 13.

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Cecília Meireles - Estirpe

Lendo este poema de Cecília e, mesmo a despeito de sabê-lo publicado em 1939, sustentaria que não deixam de ser nítidos os traços orientais alusivos a uma paisagem tipicamente indiana, seus muitos mendigos e místicos iogues, em combinação a um ‘modus vivendi’ que se declara “estoico”.

 

A poetisa empreende suas associações, evidenciando o seu desconsolo frente ao problema social que também se lhe revela em primeira mão: afinal, “mendigos adultos” são facilmente encontráveis nas ruas das grandes metrópoles destes ‘tristes trópicos’ de Pindorama, embora não tão “espiritualizados” quanto os do país asiático.

 

E nesse mundo de vastidões, de “viagens” físicas ou mentais, a julgar pelo derradeiro verso do poema, esse “povo” excluído, que aos poucos “vai se convertendo em pedra”, revela certos traços de identificação com a própria estirpe dos poetas, da qual Cecília fazia parte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Cecília Meireles

(1901-1964)

 

Estirpe

 

Os mendigos maiores não dizem mais, nem fazem nada.

Sabem que é inútil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.

Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de completa

coragem,

longe do corpo que fica em qualquer lugar.

 

Entretêm-se a estender a vida pelo pensamento.

Se alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.

E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente

que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.

 

Oh! não gemiam, não... Os mendigos maiores são todos estoicos.

Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz,

mas não querem que, do outro lado, tenham notícia

da estranha sorte

que anda por eles como um rio num país.

 

Os mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.

Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.

Têm seu reino vazio, de altas estreias que não cobiçam.

Seu olhar não olha mais, e sua boca não chama nem ri.

 

E seu corpo não sofre nem goza. E sua mão não toma nem pede.

E seu coração é uma coisa que, se existiu, já se esqueceu.

Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai convertendo

em pedra.

Esse povo é que é o meu.

 

Os Retirantes

(Candido Portinari: pintor paulista)

 

Referência:

 

MEIRELES, Cecília. Estirpe. In: __________. Viagem. 1. ed. Lisboa, PT: Editorial Império, 1939. p. 162-163.

domingo, 28 de agosto de 2022

Henry Wadsworth Longfellow - Um Salmo de Vida

O ente lírico não deseja escutar lúgubres canções que falem sobre a inutilidade da vida – um hipotético “sonho vazio” –, pois que está imbuído do mais arrebatado otimismo em relação a tudo quanto foi colocado à sua disposição, para desfrute e felicidade: recomenda-nos, assim, que façamos arder a chama de nosso “Deus interior”, fiquemos de pé e ponhamo-nos em ação, tornando reais as nossas potencialidades!

 

Nada de pertencer a um rebanho embatucado e tocado por outros, assumindo uma mentalidade de manada! Como se costuma dizer, não há grandes conquistas sem a assunção de grandes riscos! A vida é para fortes e não se duvide de que o falante, com tal estado de espírito entusiasmado, chegará bem longe em sua aventura sobre a terra.

 

J.A.R. – H.C.

 

Henry W. Longfellow

(1807-1882)

 

A Psalm of Life

 

What The Heart Of The Young Man

Said To The Psalmist.

 

Tell me not, in mournful numbers,

“Life is but an empty dream!”

For the soul is dead that slumbers,

And things are not what they seem.

 

Life is real! Life is earnest!

And the grave is not its goal;

“Dust thou art, to dust returnest,”

Was not spoken of the soul.

 

Not enjoyment, and not sorrow,

Is our destined end or way;

But to act, that each to-morrow

Find us farther than to-day.

 

Art is long, and Time is fleeting,

And our hearts, though stout and brave,

Still, like muffled drums, are beating

Funeral marches to the grave.

 

In the world’s broad field of battle,

In the bivouac of Life,

Be not like dumb, driven cattle!

Be a hero in the strife!

 

Trust no Future, howe’er pleasant!

Let the dead Past bury its dead!

Act, – act in the living Present!

Heart within, and God o’erhead!

 

Lives of great men all remind us

We can make our lives sublime,

And, departing, leave behind us

Footprints on the sands of time;

 

Footprints, that perhaps another,

Sailing o’er life’s solemn main,

A forlorn and shipwrecked brother,

Seeing, shall take heart again.

 

Let us, then, be up and doing,

With a heart for any fate;

Still achieving, still pursuing,

Learn to labor and to wait.

 

Nenúfares

(Dominique Amendola: pintora francesa)

 

Um Salmo de Vida

 

O Que o Coração do Jovem

Disse ao Salmista.

 

Não me digas, em lúgubres cifras,

que “A vida não passa de um sonho vazio!”

Porque morta é a alma que dormita,

E as coisas não são o que parecem.

 

A vida é real! A vida tem propósito!

E o túmulo não é seu objetivo;

“Tu és pó e ao pó retornarás”,

É citação não aplicável à alma.

 

Não é o prazer, tampouco a tristeza,

A rota ou meta que nos foram atribuídas;

Mas o agir, para que cada amanhã

Nos encontre mais à frente que hoje.

 

A arte é longa e o Tempo fugidio,

E nossos corações, embora fortes e briosos,

Continuam a ruflar, como surdos tambores,

Marchas fúnebres em direção à tumba.

 

No vasto campo de batalha do mundo,

No bivaque da Vida,

Não sejas como gado lerdo e conduzido!

Sê um herói na luta!

 

Não confies no Futuro, por mais que agradável!

Que o Passado morto enterre seus mortos!

Age, – age no Presente vivo!

O coração a guiar o espírito e Deus no alto!

 

As vidas de homens ilustres nos inspiram

A que tornemos sublimes as nossas vidas,

Deixando às nossas costas, ao partirmos,

Pegadas nas areias do tempo;

 

Pegadas que talvez outro,

Vogando no solene alto-mar da vida,

Um irmão náufrago e desamparado,

Ao vê-las, volte a encher-se de ânimo.

 

Então, fiquemos de pé e a agir,

Devotados a encarar qualquer destino;

Sempre a conquistar, sempre a empreender,

Aprendamos a trabalhar e a esperar.

 

Referência:

 

LONGFELLOW, Henry Wadsworth. The psalm of life. In: __________. The early poems of Henry Wadsworth Longfellow. With biographical sketch by Nathan Haskell Dole. Boston, MA: Thomas Y. Crowell & Co., 1893. p. 7-8. Disponível neste endereço. Acesso em: 19 ago. 2022.