Alpes Literários

Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Pessimismo Luso-Brasileiro

Sobre as letras, muitos já arguiram a proposição de que a compulsão à escrita seria o meio para dar vazão ao que vai de mais recôndito na alma, um processo catártico, de purificação de nossas alegrias e traumas.

E assim, em meio a muito pessimismo, denominador comum nos seis sonetos que abaixo transcrevemos – três de poetas brasileiros, outros três de portugueses –, há um a revelar que mesmo a alegria, caso presente nos versos do poeta, pode se mostrar falsa, como um fingimento pessoano às avessas, tudo em razão de que o vate se encontra num mar de carências, necessidades, e precisa expressar aquilo que venha a agradar à maioria de seus leitores. Bocage que o diga, lá no desfecho!

J.A.R. – H.C.

Vicente de Carvalho
(1866-1924)
Poeta Brasileiro
Período: Parnasiano
[SANCHES NETO, 2008, p. 49]

Velho Tema I

Só a leve esperança, em toda a vida,
disfarça a pena de viver, mais nada;
nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
sonho que a traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada
e que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

existe, sim: mas nós não a alcançamos
porque está sempre apenas onde a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos. 

Auta de Souza
(1876-1901)
Poetisa Brasileira
Período: Simbolista
[SANCHES NETO, 2008, p. 65]

Súplica

Se tudo foge e tudo desaparece,
se tudo cai ao vento da Desgraça,
se a vida é o sopro que nos lábios passa
gelando o ardor da derradeira prece;

se o sonho chora e geme e desfalece
dentro do coração que o amor enlaça,
se a rosa murcha inda em botão, e a graça
da moça foge quando a idade cresce;

se Deus transforma em sua lei tão pura
a dor das almas que o ideal tortura
na demência feliz de pobres loucos...

se a água do rio para o oceano corre,
se tudo cai, Senhor! por que não morre
a dor sem fim que me devora aos poucos? 

Amadeu Amaral
(1875-1929)
Poeta Brasileiro
Período: Pré-Modernismo
[SANCHES NETO, 2008, p. 75]

Minha alma é uma casa abandonada

Minha alma é uma casa abandonada,
por cujos tenebrosos corredores
volteia a ronda volatilizada
dos espectros de mortos moradores.

Um dia esta mansão mal-assombrada,
afugentando a treva e seus horrores,
entraste – alegre aparição alada –,
num explodir de claridade e olores;

mas de pronto fugiste, e hoje, silente,
esconde a velha casa à luz do dia
as mesmas sombras, que volteiam juntas...

Ah! terei de guardar eternamente
na solidão desta alma escura e fria
estas saudades de ilusões defuntas!
Violante do Céu
(1602-1693)
Poetisa Portuguesa
Período: Barroco
[SANCHES NETO, 2008, p. 90]

Vida que não acaba de acabar-se...

Vida que não acaba de acabar-se,
chegando já de vós a despedir-se,
ou deixa por sentida de sentir-se,
ou pode de imortal acreditar-se.

Vida que já não chega a terminar-se,
pois chega já de vós a dividir-se,
ou procura vivendo consumir-se,
ou pretende matando eternizar-se.

O certo é, Senhor, que não fenece,
antes no que padece se reporta,
porque não se limite o que padece.

Mas, viver entre lágrimas, que importa?
se vida que entre ausência permanece
é só viva ao pesar, ao gosto morta.
Cruz e Silva
(1731-1799)
Poeta Português
Período: Neoclássico
[SANCHES NETO, 2008, p. 97]

De tiranas lembranças combatido...

De tiranas lembranças combatido
a vida vou passando; e tal estado
a lembrança me tem do bem passado,
que antes quisera nunca haver nascido.

O coração em partes dividido
corre do peito aos olhos apressado;
e por mais que o suspenda violentado,
sai em lágrimas todo convertido.

Oh se a morte, vibrando cruelmente
a curva foice, me roubasse o alento!
Ou ao menos, se o Fado o não consente,

de todo me faltara o entendimento!
Pois se a razão perdesse, juntamente
com ela perderia o sentimento. 

Manuel Maria du Bocage
(1765-1805)
Poeta Português
Período: Neoclássico
[SANCHES NETO, 2008, p. 103]

Proposição das rimas do poeta

Incultas produções da mocidade
exponho a vossos olhos, ó leitores:
vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores.

Ponderai da Fortuna a variedade
nos meus suspiros, lágrimas e amores;
notai dos males seus a imensidade,
a curta duração de seus favores;

e se entre versos mil de sentimento
encontrardes alguns cuja aparência
indique festival contentamento,

crede, ó mortais, que foram com violência
escritos pela mão do Fingimento,
cantados pela voz da Dependência.

Referência:

SANCHES NETO, Miguel (sel. e org.). Os 100 melhores sonetos clássicos da língua portuguesa. Belo Horizonte (MG): Leitura, 2008.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Kaváfis - O Quanto Possas

Vai aqui um conselho, sob a forma de poema, de autoria do poeta grego Konstantínos Kaváfis, para que não tornemos as nossas vidas envilecidas pelo desmedido comércio do mundo, nem a dissipemos em torpe exposição a conversas indignas.

O poema, datado de 1913, encontra-se nesta página do site oficial dedicado a Kaváfis, em sua versão original em grego. Meio em tom homilético, como se estivesse doutrinando os seus cativos leitores, o autor os exorta para que elevem a mente a um nível superior de consciência, para que não deixem a vida escoar entre os dedos, em experiências que não agreguem valor, em mesquinharias, maledicências, talentos desperdiçados, vícios funestos.

Ousando conferir interpretação não tão parelha ao quanto prescreve Kaváfis, sugerimos que você, internauta amigo(a), ao contrário de compulsar a revista “Caras”, disponível em qualquer salão de beleza de quinta categoria da cidade, vá até uma biblioteca e se entretenha, em alto nível, com as intrigas e a arte da sedução de “As Relações Perigosas”, de Choderlos de Laclos. Percebeu a diferença? Mesmo quando o tema são baixarias, elas podem ser assimiladas num linguajar culto, a serviço da alta literatura (rs).

J.A.R. – H.C.

Konstantínos P. Kaváfis
(1863-1933)

Όσοορείς

Κι αν δεν μπορείς να κάμεις την ζωή σου όπως την θέλεις,
τούτο προσπάθησε τουλάχιστον
όσο μπορείς: μην την εξευτελίζεις
μες στην πολλή συνάφεια του κόσμου,
μες στες πολλές κινήσεις κι ομιλίες.

Μην την εξευτελίζεις πηαίνοντάς την,
γυρίζοντας συχνά κεκθέτοντάς την
στων σχέσεων και των συναναστροφών
την καθημερινήν ανοησία,
ώς που να γίνει σα μια ξένη φορτική. 


O Quanto Possas

Se não podes afeiçoar tua vida como queres,
deves ao menos tentar, o quanto
possas, isto: não a rebaixes
no excessivo comércio do mundo,
no excesso de palavras e de gestos.

Não a rebaixes levando-a para dar
passeios, exibindo-a o tempo todo
nas reuniões e comemorações
em que a tolice diária se compraz,
até fazeres dela uma estranha importuna. 


Referência:

KAVÁFIS, Konstantínos P. O quanto possas. In: PAES, José Paulo (seleção e tradução). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 57-58.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Marin Sorescu - Tradução

Muitas já foram as postagens neste blog sobre o problema que é traduzir, de um idioma a outro, poemas ou textos com forte sentido conotativo. Há mesmo quem teça ironias espirituosas sobre tais dificuldades, como o romeno Marin Sorescu, no poema em destaque.

Como se poderia conjecturar maldosamente, o tradutor é um parente pobre do escritor. Ou por outra: quem não tem o dom da escrita, traduz. E o que seria, exatamente, a tradução: uma reprodução literal do original? Uma aproximação? Uma imitação? Uma equivalência? Uma substituição? Uma recriação? Ou tudo isso junto?

O homem é um símio, se parece com um símio, tem ancestral comum ao dos símios, é uma versão mais apurada de um símio, vale tanto quanto um símio ou nada disso?

Ousaríamos afirmar que o labor do tradutor e tão ou mais árduo que o do escritor, em sua interação com as musas: sabe-se lá o que é tentar manter o esquema de rimas do original, guardando a mesma métrica e preservando o equilíbrio rítmico de um poema!

Além disso, a tradução em seu brilho, não raras vezes, supera o texto do idioma-mãe, de tal sorte que a criação em segundo grau, havendo atingido um inegável grau de perfeição, assume autonomia em relação à sua matriz.

Assim me expressando, mereço ou não algumas loas pela defesa dos tradutores? (rs). Infelizes deles, que mal fazem jus a menções ao pé da página, como as do final desta estampa.

J.A.R. – H.C.

Marin Sorescu
(1936-1996)

Retroversiune

Sustineam examenul
La limba moarta,
Si trebuia sa ma traduc
Din om în maimuta.

Am luat-o pe departe,
Traducând mai întâi un text
Dintr-o padure.

Retroversiunea devenea însa
Tot mai dificila, cu cât ma apropiam de mine.
Cu putin efort
Am gasit totusi echivalente multumitoare
Pentru unghii si parul de pe picioare.

Pe la genunchi am început sa ma bâlbâi.
În dreptul inimii mi-a tremurat mâna
Si-am facut o pata de soare.

Am mai încercat eu s-o dreg
Cu parul de pe piept.
Dar m-am poticnit definitiv
La suflet.


Translation

I was sitting an exam
In a dead language
And I had to translate myself
From man into ape.

I played it cool,
First translating a text
From a forest.

But the translation got harder
As I drew nearer to myself.
With some effort
I found, however, satisfactory equivalents
For nails and the hair on the feet.

Around the knees
I started to stammer.
Towards the heart my hand began to shake
And blotted the paper with light.

Still, I tried to patch it up
With the hair of the chest,
But utterly failed
At the soul.


Tradução

Estava eu fazendo um exame
Numa língua morta
E tinha de me passar em tradução
De homem a macaco.

Joguei com tranquilidade,
Traduzindo primeiro um texto
De uma selva.

Mas a tradução se tornou mais difícil
Quando me aproximei de mim mesmo.
Com algum esforço
Achei, contudo, satisfatórias equivalências
Para as unhas e o pelo dos pés.

Perto dos joelhos
Comecei a gaguejar.
Em direção ao coração minha mão começou a tremer
E manchou o papel com luz.

Ainda assim, tentei remendar
Com o pelo do peito,
Mas falhei redondamente
Na alma.

Referências:

Do original em romeno
SORESCU, Marin. Retroversiune. Disponível neste endereço. Acesso em: 16 fev. 2015.

Da versão em inglês
SORESCU, Marin. Translation. Translated from the Romanian by Timothy J. L. Cribb. In: STEINER, George. After Babel: aspects of language and translation. 3rd. ed. Shanghai (CN): Shanghai Foreign Language Education Press, 2001. p. 254.

Da versão em português
SORESCU, Marin. Tradução. In: STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Tradução para o português de Carlos Alberto Faraco. Curitiba (PR): Editora da UFPR, 2005. p. 265.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Jalal ud-Din Rumi - Não Penses

Um belo poema de Rumi, talvez o maior dos poetas místicos sufis, a sugerir que renunciemos a todos os pensamentos, essa força que nos consome de alto a baixo, verdadeiras armadilhas para o espírito.

Quantas noites perdidas em pensamentos acerca de presunções futuras que, talvez, jamais aconteçam. Quanto cansaço que disso deriva, fazendo-nos levantar combalidos por uma luta contra um anjo que se compraz em incitar o desejo humano.

Não penses. Não penses. Os pensamentos têm o poder de nos levar a passeio pelas instâncias mediadoras da ação. E são nossas ações que externalizam para o mundo o que vai em nosso interno: os abismos do mal ou a epifania do divino.

J.A.R. – H.C.

Rumi
(1207-1273)

Não Penses

Não penses. Não penses.
Os pensamentos são como a chama
Que de alto a baixo tudo consome.

Perde a razão,
endoidece de embriaguez e assombro,
e de cada broto nascerá a cana-de-açúcar.

A bravura é demência, tira-a da cabeça, renuncia!
Como o leão e os homens, renega vãs esperanças.
Os pensamentos são armadilhas,
é proibido desperdiçá-los.

Para que tanto sacrifício por migalhas?
Se não te absténs desse alimento,
é inútil querer livrar-te de tais ardis.
Se a avidez reclama, sê surdo aos seus apelos.

Referência:

RUMI, Jalal ud-Din. Não penses. In: __________. Poemas místicos: Divan de Shams de Tabriz. Seleção, tradução e introdução de José Jorge de Carvalho. 2. ed. São Paulo: Attar, 2010. p. 63.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Primo Levi - É isto um homem?

Neste poema que serve de epígrafe às suas memórias de Auschwitz, “É isto um homem?”, Primo Levi, um químico italiano de origem judaica, alerta a humanidade para que não enverede pelas trilhas do mal, que mantenha o coração permeável aos sentimentos de compaixão e de solidariedade, sem os quais a vida pode se esvair numa experiência sem sentido.

Outro livro de um judeu que experimentou as agruras de Auschwitz é “Uma criança de sorte”, de Thomas Buergenthal, que havendo nascido na Eslováquia, emigrou para os EUA depois da 2GM. Thomas tornou-se em terras americanas um defensor dos direitos humanos, atuando como juiz na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), bem assim na Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia (Holanda).

Poderia o internauta supor que o texto de Buergenthal, por ser jurista, talvez se mostrasse mais pleno de recursos linguísticos que o do italiano. Nada mais enganoso: o legado de Primo Levi, trazido à prensa, é superior ao de Buergenthal, cuja prosa, em determinadas passagens, chega a ser simplória, sobretudo na parte final da obra, e mesmo a despeito do que, circunstancialmente, esteja narrando. Melhor ainda: o hungáro Imre Kertész, Nobel de Literatura em 2002, é, não sem motivos, superior a ambos.

Frisemos, por oportuno, que a tradução do livro do referido autor para o português, pela Editora Nova Fronteira (vide referência), contém alguns pequenos erros tipográficos ou de redação, e outros mais no qual o texto vertido apresenta claros problemas contextuais, merecedores de revisão.

Surpreendeu-nos a omissão (ou não, a depender do ponto de vista) de Buergenthal, em suas memórias, sobre a contenda israelo-palestiniana. Afinal, mencionam-se desrespeitos aos direitos humanos em várias partes do mundo – em Ruanda, África do Sul, Camboja, URSS, Balcãs, El Salvador, Honduras e outros países da América Latina –, mas em Israel absolutamente nada, como se o país sempre houvesse honrado o ordenamento jurídico internacional.

Relembremos que o magistrado foi voto vencido em decisão de 2004, na retromencionada CIJ, que declarou ilegal a construção, por Israel, de um muro interposto entre o país e a Cisjordânia. E Buergenthal pertencia então àquela Corte por indicação dos EUA.

Argumento? O direito de defesa de Israel, como se o direito de autodeterminação do outro povo, o palestino, fosse terra arrasada! Seis décadas, e nada, como faticamente se mostra: de modo reiterado, Israel invade – abstemo-nos de empregar o eufemismo “ocupação” – territórios que não lhe pertencem, na Cisjordânia, vituperando os direitos mais do que humanos de um outro povo.

E a vida segue, recheada de pecados por omissão. Por isso antepomos as palavras de Lennon – “Imagine o mundo sem países, sem religião, nenhuma razão para matar ou morrer: não é difícil imaginar” – às da grande máxima de Sartre – “O inferno são os outros”.

J.A.R. – H.C.

Primo Levi
(1919-1987)

Se questo è um uomo

Voi che vivete sicuri
Nelle vostre tiepide case,
Voi che tróvate tornando a sera
II cibo caldo e visi amici:
Considerate se questo è un uomo,
Che lavora nel fango
Che non conosce pace
Che lotta per mezzo pane
Che muore per un si o per un no.
Considerate se questa è una donna,
Senza capelli e senza nome
Senza piii forza di ricordare
Vuoti gli occhi e freddo il grembo
Come una rana d’inverno.
Meditate che questo è stato:
Vi comando queste parole.
Scolpitele nel vostro cuore
Stando in casa andando per via,
Coricandovi alzandovi;
Ripetetele ai vostri figli.
O vi si sfaccia la casa,
La malattia vi impedisca,
I vostri nati torcano il viso da voi.

Auschwitz Rose
Mary Rae: artista norte-americana

É isto é um homem?

Vós que viveis seguros
Nas vossas tépidas casas,
Vós que, regressando à noite, encontrais
Comida quente e rostos amigáveis:
Considerai se isto é um homem,
Que trabalha na lama
Que não conhece paz
Que luta por um pedaço de pão
Que morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para lembrar
Vazios os olhos e frio o ventre
Como uma rã no inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Mando-vos estas palavras.
Guardai-as em vossos corações
Estando em casa, andando pela rua,
Ao deitar-vos, ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que se desestruture a vossa casa,
A doença vos torne inválidos,
E vossos filhos virem o rosto para não ver-vos.

Referências:

LEVI, Primo. Se questo è um uomo. In: MARINELLI, Elvira (Cura). Antologia illustrata della poesia: da quando l’uomo imparò ad amare ai giorni nostri. 6. ristampa. Firenzi (IT): Demetra, 2005. p. 457.

BUERGENTHAL, Thomas. Uma criança de sorte: memórias de um sobrevivente de Auschwitz. Tradução de Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Gertrude Stein – A Autobiografia de Alice B. Toklas

Coligi algumas passagens da obra em epígrafe, obra que, apesar de ser intitulada como uma autobiografia, foi, de fato – tal qual se extrai de sua leitura – escrita por Gertrude Stein, autora norte-americana. A narrativa transcorre sob a visão de Alice B. Toklas, a também norte-americana e companheira da autora por 25 anos, circunstância que, dada a estreita relação entre as duas mulheres, convalida a presumível abordagem que Alice teria adotado em relação a Gertrude.

No fundo, Gertrude falando de si mesma. Afinal, a suposta “autobiografia” diz muito mais sobre a própria Gertrude; bem mais sobre a autora do que o seu pretenso tema.

Na obra, rolam páginas e páginas em que aparecem figuras importantes do período anterior, durante e após a 1GM – Matisse, Picasso, Hemingway, Cézanne, Ezra Pound, T. S. Eliot e muitos outros –, com fatos predominantemente ocorridos em Paris, numa época em que se dizia que a capital da França era “uma festa”. Uma suma social, artística e intelectual do período, portanto.

Trata-se de livro, estimo, que tende a não agradar a quem tem apreço pela forma de narração tradicional: há muita repetição, abundância de imagens, excessos idiossincrásicos nas teses ou modos de ver as coisas, tudo encapsulado num prodigioso fluxo de consciência.

Se afirmasse que o tipo de escrita que Stein empreende na referida autobiografia não está entre os de meu deleite, talvez a autora respondesse com a mesma ironia que permeia grande parte do seu texto, dizendo-me envolto em naftalina. Vejam esta asserção: “E o Hemingway é isto, parece moderno e cheira a museu” (STEIN, 2006, p. 225) (rs).

J.A.R. – H.C.

Gertrude Stein
(1874-1946)

“Depois de certo tempo cochichei a Picasso que gostava de seu retrato de Gertrude Stein. Sim, concordou, todo mundo diz que ela não é assim, mas não faz a menor diferença, vai terminar sendo, afirmou” (STEIN, 2006, p. 16).

Gertrude Stein
(Pintura de Pablo Picasso: 1905-1906)

“[...] Como Picasso já observou, quando se faz uma coisa, ela é tão complicada de fazer que termina ficando feia, mas os que a fazem depois não precisam mais se preocupar em fazê-la e podem deixá-la bonita, e assim todo mundo gosta quando são os outros que fazem” (STEIN, 2006, p. 27).

“Afirma que, se a gente quer se divertir, é melhor não ter a menor noção de como as coisas são feitas. Deve-se escolher uma ocupação absorvente e, para aproveitar ao máximo as outras coisas da vida, contemplar apenas os resultados. Desse modo, é inevitável sentir com mais intensidade do que os que entendem um pouco sobre como as coisas são feitas” (STEIN, 2006, p. 81).

“Ela sempre diz que não gosta do que é anormal por ser tão óbvio. E que o normal é simplesmente bem mais complicado e interessante do que parece” (p. 88).

“Os americanos, segundo Gertrude Stein, são que nem os espanhóis, abstratos e cruéis. Não que sejam brutais, mas cruéis. Ao contrário da maioria dos europeus, não mantêm contato íntimo com a terra. O materialismo deles não é o materialismo da existência, da posse, é o materialismo da ação e da abstração. E é por isso que o cubismo é espanhol” (STEIN, 2006, p. 96).

“[...] Todo mundo comenta a tristeza dos grandes artistas, a trágica infelicidade deles, mas eles, afinal de contas, são grandes artistas. Já o artista menor tem toda a trágica infelicidade e a tristeza dos grandes e, ainda por cima, não é grande” (p. 120).

“Faz umas seis semanas que Gertrude Stein disse: ‘está querendo me parecer que você nunca vai escrever a tal autobiografia. Sabe o que vou fazer? Vou escrevê-la para você. Vou escrevê-la com a mesma simplicidade com que Defoe escreveu a autobiografia de Robinson Crusoé. E ela escreveu, e é isto aqui” (STEIN, 2006, p. 262).

Alice B. Toklas
(1877-1967)

Referência:

STEIN, Gertrude. A autobiografia de Gertrude Stein. Tradução de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 2006. (L&PM Pocket, n. 279)