Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Saint-Denys Garneau - Retrato

Aparentemente, o poeta canadense, por meio de versos cursos, pretende descrever uma criança real, mas logo parece hesitar em seu intento, pois adjetivos mais precisos que a pormenorizem não são encontráveis nas elusivas linhas do poema em comento. Resta-nos apenas a metáfora: o guri é um pássaro que bate em retirada tão rapidamente quanto, de súbito, irrompera.

Nada se pode divisar de firme em relação à criança, a não ser o fato de que se trata de um deliberado símbolo de algo particularmente difícil de capturar em sua aparência tangível: passa-se de uma perspectiva de encontro à outra de procura por uma criança – “ave” e “molusco” – que não se detém ou não se deixa minudenciar à perfeição, cumprindo-nos tão somente amá-la nessa evanescente jornada.

J.A.R. – H.C.

 

Saint-Denys Garneau

(1912-1943)

 

Portrait

 

C’est un drôle d’enfant

C’est un oiseau

Il n’est plus là

 

II s’agit de le trouver

De le chercher

Quand il est là

 

Il s’agit de ne pas lui faire peur

C’est un oiseau

C’est un colimaçon.

 

Il ne regarde que pour vous embrasser

Autrement il ne sait pas quoi faire

avec ses yeux

 

Où les poser

Il les tracasse comme un paysan sa casquette

 

Il lui faut aller vers vous

Et quand il s’arrête

Et s’il arrive

Il n’est plus là

 

Alors il faut le voir venir

Et l’aimer durant son voyage.

 

Menino com Pássaro

(Peter Paul Rubens: pinto flamengo)

 

Retrato

 

Aqui um menino esquisito

Aqui um pássaro

Já não está

 

Trata-se de encontrá-lo

De procurá-lo

Quando ele está

 

Trata-se de não lhe fazer medo

Aqui um pássaro

Aqui um caracol.

 

Ele olha apenas para te beijar

Aliás ele não sabe o que fazer

com seus olhos

 

Onde pousá-los

Ele os retorce como um caipira seu gorro

 

Deve ir até você

E quando ele para

E se ele chega

Já não está

 

Aí então é vê-lo vir

E amá-lo durante a viagem.


Referência:

GARNEAU, Saint-Denys. Portrait / Retrato. Tradução de Genival Teixeira Vasconcelos Filho. In: VASCONCELOS FILHO, Genival Teixeira. Traduzindo os jogos no espaço de Saint-Denys Garneau: uma poética do olhar em ‘Regard et jeux dans l’espace’. São Paulo, SP: USP – DLM/FFLCH, 2015. Em francês: p. 80-81; em português: p. 82-83. (Dissertação de Mestrado). Disponível neste endereço. Acesso em: 17 mar. 2021.

quinta-feira, 29 de abril de 2021

Sebastião Uchoa Leite - Metassombro

A tela em que se firma a “identidade” do poeta exibe, por ora, alguns tons adjetiváveis como impressionistas, carentes de nitidez no traço ou no foco, com o que o vate se põe a autoquestionar-se nesse estágio interposto à meta de plena clareza, diga-se mais nitidamente, pois que imerso num vale de tênues penumbras e ambivalências, no qual a sua figura mostra-se distorcida.

No plano da linguagem, afirma a voz lírica optar preferencialmente pela elipse como figura de estilo, uma vez focada na supressão de termos, quase sempre subentendidos, para reforçar a ideia de intermitência ou de aparição semiplena do discurso ou do próprio poema: sua ofídica língua, enquanto potente “antena”, segue a perscrutar o ambiente à volta e logo se recolhe.

J.A.R. – H.C.

 

Sebastião Uchoa Leite

(1935-2003)

 

Metassombro

 

eu não sou eu

nem o meu reflexo

especulo-me na meia-sombra

que é meta da claridade

distorço-me de intermédio

estou fora de foco

atrás da minha voz

perdi todo discurso

minha língua é ofídica

minha figura é a elipse

 

Pequeno bufão em transe

(Paul Klee: pintor suíço)


Referência:

LEITE, Sebastião Uchoa. Metassombro. In: DASSIE, Franklin Alves. Sebastião Uchoa Leite por Franklin Alves Dassie. Rio de Janeiro, RJ: EdUERJ, 2010. p. 67. (Coleção ‘Ciranda de Poesia’)

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Washington Benavides - Action Poetry

Nesta “Action Poetry” (“Poesia de Ação), do poeta uruguaio, tudo se passa como um longo, indômito, imponderável, incisivo e incontido caudal de palavras a suportar ideias, abstrações e alegorias sobre tal tipologia do universo poético: raros são os sinais de pontuação no original em espanhol, muito embora eles possam ser deduzidos com alguma facilidade – como se pode ratificar pela tradução apresentada, no caso, a honrar todas as formalidades da gramática, em grande parte, dispensadas pelo poeta.

De fato, as linhas de Benavides são a mais refinada metapoética, a esclarecer que o poema não pode, como um préstimo, dilucidar os seus próprios mistérios ao leitor – sé é que existam: na melhor das hipóteses, ele insinua-se à mente dos seus destinatários, que poderão dele depreender uma panóplia de interpretações, com o propósito de desvendar as reais intenções do vate ao redigi-lo.

J.A.R. – H.C.

 

Washington Benavides

(1930-2017)

 

Action Poetry

 

a Jackson Pollock

 

el poema no debe resolverse jamás. Líquido

que se derrama de un frasco de medicación desconocido

se extiende como una amiba sobre el piso, sobre la alfombra

sobre la losa húmeda y combina

con el agua en una aguada espontánea

que refleja los tirantes del techo su madera oscura

o una ventana como el fácil dibujo para iluminar los ojos

o las manzanas en el dibujante de comics

el poema agrede como un perro atado o se insinúa como un

gato hambriento rozándote las piernas

pero no sabes cuál es su verdadera intención sólo puedes

conjeturarla como el significado y el relieve de las nubes

puede sugerirte toda una fauna

que escapa de tu cabeza como aquella diosa nacida de la cabeza

de su padre dios de dioses

el poema no puede descifrarte su enigma porque ni siquiera

es conveniente suponerlo, suponer que existe ese enigma

el poema es la serie de palabras ininteligibles que escapan

del viejo accidentado, junto a las marcas de neumáticos del frenazo

y cientos de pares de zapatos y sandalias y botas que le rodean

como un curioso matorral

no puedes sino adivinar que cosas escapan al cerco de sus dientes

como dijera Homero

imaginar qué cosas están brotando vueltos signos de los labios

heridos del yacente

y ese viejo yacente es el poema que se desarrolla ante tus ojos

y tu mente rechaza ese escribir derramado, ese poema hemofílico

para el que no encuentras torniquete ni pinza salvadora

el poema continúa como una teletipo demencial marcando en el papel

los signos arbitrarios mientras no se descubre su doctrina

– si ella existe – la intencionalidad que ha movido los dedos

del mecanógrafo para crear hileras tras hileras tras hileras

otras viñas de La Ira.

 

En: “El mirlo y la misa” (2000)

 

Veja através

(Sandra Vucicevic: artista sérvia)

 

Action Poetry

 

A Jackson Pollock

 

O poema jamais deve ser resolvido. Líquido

a derramar-se de um frasco de desconhecido fármaco,

espalha-se como uma ameba sobre o chão, sobre o tapete,

sobre o ladrilho úmido e mistura-se

com a água, num guache espontâneo,

a refletir as vigas do teto, sua madeira escura

ou uma janela, como o fácil desenho para iluminar os olhos

ou as maçãs nas histórias em quadrinhos do cartunista.

O poema ataca como um cão amarrado ou insinua-se como um

gato faminto, roçando-te as pernas,

e embora não saibas qual a sua verdadeira intenção, somente

podes conjecturá-la, tal como o significado e o relevo das nuvens

podem sugerir-te toda uma fauna

que escapa de tua cabeça, como aquela deusa nascida da cabeça

de seu pai, deus dos deuses.

O poema não pode decifrar-te seu enigma, porque sequer

é conveniente supô-lo, supor que exista tal enigma.

O poema é uma série de palavras ininteligíveis que escapam

do velho acidentado, junto às marcas de derrapagem dos freios

e centenas de pares de sapatos e sandálias e botas ao seu redor,

como um curioso matagal.

Não podes senão adivinhar que coisas escapam ao aperto de seus dentes,

como dissera Homero,

imaginar quais coisas estão a brotar, transmutadas em sinais dos lábios

feridos do jacente,

e esse velho jacente é o poema que se desenvolve diante dos teus olhos,

e tua mente rejeita essa escrita derramada, esse poema hemofílico

para o qual não encontras nem torniquete nem pinça salvadora.

O poema continua como um teletipo demencial, marcando no papel

os sinais arbitrários, enquanto não se descobre a sua doutrina

– se é que ela existe –, a intencionalidade que moveu os dedos

do digitador a criar fileiras sobre fileiras e mais fileiras

de outras vinhas da Ira.

 

Em: “O melro e a missa” (2000)


Referência:

BENAVIDES, Washington. Action poetry. In: HALADYNA, Ronald (Introduction, English Translations, Bibliographies and Notes). Contemporary uruguayan poetry. A bilingual edition: Spanish x English. Lewisburg, OH: Bucknell University Press, 2010. p. 78 y 80.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Lord Byron - Sol dos Insones

Se não houver erro, Byron reporta-se à lua como se fosse o sol que brilha para os insones: segundo o poeta, é pelo brilho dessa “estrela melancólica” que somos capazes de notar a escuridão da noite em curso, quando, de fato, mais notória para cada um de nós é a noite que, a tudo anuviando, acaba por dar acento diferenciado à luz refletida pelo satélite.

A propósito, a mensagem principal do poema emerge exatamente dessa luz: o ocorrido no dia que se encerra, à luz do sol, resta superado pela luz lunar revérbera da noite sucedânea, intimamente absorvida pela voz lírica em uma entonação elegíaca, eis que, embora distinta, esplende distante, esmaecida e fria – como os transcorridos estados de felicidade, que vão se desvanecendo da memória.

J.A.R. – H.C.

 

Lord Byron

(1788-1824)

Por Théodore Géricault

 

Sun of the Sleepless

 

Sun of the Sleepless! melancholy star!

Whose tearful beam glows tremulously far,

That show’st the darkness thou canst not dispel,

How like art thou to Joy remembered well!

So gleams the past, the light of other days,

Which shines but warms not with its powerless rays:

A night-beam Sorrow watcheth to behold,

Distinct, but distant – clear – but, oh, how cold!

 

From: “Hebrew Melodies” (1815)

 

Amanhecer depois de uma noite insone

(Herold Boertjens: artista holandês)

 

Sol dos Insones

 

Sol dos insones! merencório astro!

Tu, cujo raio lacrimoso ao longe

Tremulamente brilha; tu, que as trevas

Nos mostras, cujo véu rasgar não podes,

Oh! como te pareces co’a ventura

Que profunda lembrança após deixara!

Assim fulge o passado, doutras eras

Luz, cujos raios frouxamente esplendem

Sem jamais aquecerem: luz noturna

Que em constante vigília a Dor contempla,

Luz distinta e distante ao mesmo tempo,

Límpida e clara e desmaiada e fria!

 

De: “Melodias Hebraicas” (1815)


Referências:

Em Inglês

BYRON, Lord. Sun of the sleepless. In: __________. The works of Lord Byron: in five volumes. Vol. IV. 2nd ed. Leipzig, DE: Bernhard Tauchnitz, 1866. p. 14. (‘Collection of British Authors’; vol. XI)

Em Português

BYRON, Lord. Sol dos insones. Tradução de Antônio Franco da Costa Meireles. In: __________. As trevas e outros poemas. Organização de Cid Vale Ferreira. Vários tradutores. São Paulo, SP: Saraiva, 2007. p. 41. (‘Clássicos Saraiva’)

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Ronald de Carvalho - A Estrada Sem Fim

Embora possa ser lido em sua dicção denotativa – um homem em sua lida diária, percorrendo um cenário natural, integrado por selva, rios, vulcões, landes e tudo mais –, o infratranscrito poema comporta, sem dúvida, um sentido conotativo, caso se considere todo o seu traçado um esboço metafórico para os trânsitos da vida humana: juventude, maturidade, velhice e morte.

Ao homem não é dado conhecer o que há para além dessa estrada: a morte engendra uma panóplia de teorias a hipostasiar existências além-túmulo. Há, também, aqueles que, como o compositor Gilberto Gil (G.G.), espelham certo pirronismo sobre o sentido último da vida: diz ele, em “Se eu quiser falar com Deus”, que, seja o que for tal propósito, há de caminhar decidido por essa estrada – “que ao findar vai dar em nada do que eu pensava encontrar”! Remanesce a pergunta irrespondível: se o Eterno não encontrar, G.G. deparar-se-á com o quê?!

J.A.R. – H.C.

 

Ronald de Carvalho

(1893-1935)

Por Vicente do Rego Monteiro

 

A Estrada Sem Fim

 

Dentre uma leve espuma, em rondas suaves,

A madrugada rompe. Um canto de ânsia

Sobe da selva funda e sossegada,

E agita as frondes no ar sonoro de aves.

 

O homem levanta as mãos para a distância

Que surge, lentamente, em sua estrada;

E o passo audaz, sereno, a alma confiante,

Sobre pedras e espinhos caminhando,

O tempo que floresce no quadrante

Vai, solitário e alegre, desfolhando...

 

Ao sol do meio dia, quando o espaço

Toma os contornos de um castelo mouro,

E o céu em chamas, lembra um rio de aço

Entre escarpas de brasa e vulcões de ouro,

O homem para, abre os olhos, e medita

Na solidão das landes, infinita!

 

Depois, a tarde cobre todo o ambiente

Com as imagens sonâmbulas, estranhas,

De uma renda de cinza transparente;

E, enquanto, pouco e pouco, tremulando,

Num chuveiro de sóis a noite desce,

O homem, erguendo as mãos inutilmente

À distância, que vai sempre aumentando,

Entre abismos, torrentes e montanhas,

Pela estrada sem fim desaparece...

 

A Estrada Sem Fim

(Dejan Trajkovic: pintor sérvio)


Referência:

CARVALHO, Ronald de. A estrada sem fim. In: __________. Poemas e sonetos. Obra premiada pela Academia de Letras. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro & Maurillo Editores, 1919. p. 123-124.