Carlos Drummond de Andrade - Oficina Irritada

Drummond dispõe-se a escrever um “soneto duro”, agressivo, capaz de exasperar o leitor – a começar pelo ritmo, com inusitados acentos em sílabas poéticas imperares em versos decassílabos –, passando por contrastes provocados por palavras raras frente a outras ordinárias, além de metáforas e expressões ao largo da comum forma com que os poetas tendem a comprazer o seu público.

 

As imagens evocadas são bastante insólitas – “tiro no muro”, “cão mijando no caos” etc. –, buscando surpreender o leitor, levando-o a “sofrer” exatamente em seu “ponto fraco” – cuja debilidade ainda mais se acentua pela permuta do masculino “Aquiles” pelo feminino “Vênus” na expressão “tendão de Vênus” –, denotando, assim, uma conjecturável aspiração da voz lírica em fugir à rotina de se escrever versos com tanta perícia técnica, mas com limitados conteúdos ou sentidos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Oficina Irritada

 

Eu quero compor um soneto duro

como poeta algum ousara escrever.

Eu quero pintar um soneto escuro,

seco, abafado, difícil de ler.

 

Quero que meu soneto, no futuro,

não desperte em ninguém nenhum prazer.

E que, no seu maligno ar imaturo,

ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

 

Esse meu verbo antipático e impuro

há de pungir, há de fazer sofrer,

tendão de Vênus sob o pedicuro.

 

Ninguém o lembrará: tiro no muro,

cão mijando no caos, enquanto Arcturo,

claro enigma, se deixa surpreender.

 

Em: “Claro Enigma” (1951)

 

A coroação de Homero como poeta laureado

(Antonio Zucchi: pintor italiano)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Oficina irritada. In: __________. 100 poemas. Edição bilíngue: português x espanhol. Organização e tradução / Organización y traducción de Manuel Graña Etcheverry. Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG, 2002. p. 228. (‘Inéditos & Esparsos’)

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