Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 24 de abril de 2022

Euclides da Cunha - Sonetos a figuras históricas da Revolução Francesa

Danton, Marat, Robespierre, Saint-Just são os títulos dos infratranscritos poemas, todos eles redigidos pelo autor de “Os Sertões”, para os quais também traslado, mais ao fim, as notas de rodapé esgrimidas por Adelino Brandão, grande conhecedor da biografia e da obra literária do escritor e jornalista fluminense.

 

Esclareça-se que, a menos de Marat – assassinado em sua banheira por Charlotte Corday (v. pintura abaixo, de Jacques-Louis David), esta, sim, guilhotinada –, todos os demais – Danton, Robespierre e Saint-Just – foram executados por meio do referido instrumento, o qual serviu para decapitar quase três mil “inimigos da Revolução”, em Paris (FR).

 

J.A.R. – H.C.

 

Euclides da Cunha

(1866-1909)

 

Dantão (1)

(CUNHA, 2005, p. 26)

 

Parece-me que o vejo iluminado,

Erguendo delirante a grande fronte

– De um povo inteiro o fúlgido horizonte

Cheio de luz, de ideias constelado!

 

De seu crânio vulcão – a rubra lava

Foi que gerou essa sublime aurora

– Noventa e três (2) – e a levantou sonora

Na fronte audaz da populaça brava!

 

Olhando para história – um século e a lente

Que mostra-me o seu crânio resplandente

Do passado através o véu profundo...

 

Há muito que tombou, mas inquebrável

De sua voz o eco formidável

Estruge ainda na razão do mundo!

 

Retrato de Georges Danton

(1759-1794)

Por Constance M. Charpentier

 

Marat (3)

(CUNHA, 2005, p. 27)

 

Foi a alma cruel das barricadas!...

Misto de luz e lama!... se ele ria,

As púrpuras (4) gelavam-se e rangia

Mais de um trono, se dava gargalhadas!...

 

Fanático da luz... porém seguia

Do crime as torvas, lívidas pisadas.

Armava, à noite, aos corações ciladas,

Batia o despotismo à luz do dia.

 

No seu cérebro tremente negrejavam

Os planos mais cruéis e cintilavam

As ideias mais bravas e brilhantes.

 

Há muito que um punhal gelou-lhe o seio...

Passou... deixou na história um rastro cheio

De lágrimas e luzes ofuscantes.

 

A Morte de Marat

(1743-1793)

Pintura de Jacques-Louis David

 

Robespierre (5)

(CUNHA, 2005, p. 28-29)

 

Alma inquebrável – bravo sonhador

De um fim brilhante, de um poder ingente,

De seu cérebro audaz, a luz ardente

É que gerava a treva do Terror (6)!

 

Embuçado num lívido fulgor,

Su’alma colossal, cruel, potente,

Rompe as idades, lúgubre, tremente,

Cheia de glórias, maldições e dor!

 

Há muito que, soberba, essa’alma ardida

Afogou-se cruenta e destemida

– Num dilúvio de luz. Noventa e três... (7)

 

Há muito já que emudeceu na história

Mas ainda hoje a sua atroz memória

É o pesadelo mais cruel dos reis!...

 

Maximilien de Robespierre

(1758-1794)

Pintor anônimo

 

Saint-Just (8)

(CUNHA, 2005, p. 30-31)

 

“Un discours de Saint-Just donnait tout de suite

un caractere terrible au débat...” (9)

(RAFFY: Procès de Louis XVI)

 

Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo,

– Ao forte impulso das paixões audazes –

Ardente o lábio de terríveis frases

E a luz do génio em seu olhar fulgindo,

 

A tirania estremeceu nas bases,

De um rei na fronte ressumou, pungindo (10),

Um suor de morte e um terror infindo

Gelou o seio aos cortesãos sequazes... (11)

 

Uma alma nova ergueu-se em cada peito,

Brotou em cada peito uma esperança,

De um sono acordou, firme, o Direito –

 

E a Europa – o mundo – mais que o mundo, a França –

Sentiu numa hora sob o verbo seu

As comoções que em séculos não sofreu!... (12)

 

Louis A. L. de Saint-Just

(1767-1794)

Por Pierre-Paul Prud’hon

 

Notas de Adelino Brandão:

 

(1). Dantão: Danton (1759-1794). Advogado e político francês. Revolucionário. Desempenhou papel de destaque durante a Revolução Francesa (1789). Foi ministro da Justiça, deputado e membro do Conselho Executivo Provisório de 1792. Grande orador. Guilhotinado em Paris, em 1793, durante o “Terror”. Euclides lhe grafa o nome de acordo com as tradições e regras vernáculas, hoje esquecidas. Este soneto está datado de 1883. (CUNHA, 2005, p. 26)

 

(2). Noventa e três: referência ao ano de 1793, de grande significado na história da Revolução Francesa, quando foi aprovada a Constituição do Ano 1, da República. Período do “Terror”, com a vitória dos radicais (Robespierre) e a instalação da guerra civil entre republicanos e realistas (partidários da monarquia deposta). (CUNHA, 2005, p. 26)

 

(3). Marat: jornalista e político revolucionário francês, da extrema esquerda (1743-1793). Fundador e redator do jornal popular L’Ami du peuple. Deputado, eleito por Paris, decidiu pela condenação à morte de Luís XVI. Morreu apunhalado por Carlota Corday, quando tomava um banho de banheira. Este soneto é datado de 1883. (CUNHA, 2005, p. 27)

 

(4). Púrpura: cor vermelha; matéria corante vermelha, utilizada antigamente para tingir mantos e tecidos ricos, usados pelos imperadores, césares, reis, cardeais, etc. Símbolo da nobreza e alta dignidade. Figura de retórica empregada pelo poeta com o significado de “tronos”, “coroas”, os “reis”, a monarquia, o poder real, o absolutismo reinante. (CUNHA, 2005, p. 27)

 

(5). Robespierre: político francês (1758-1794). Advogado. Deputado na Assembleia Constituinte de 1785, como representante do Terceiro Estado (o Povo, isto é, a burguesia). Os outros dois Estados ou classes sociais eram a Nobreza e o Clero. Esses “Estados” desapareceram com a Revolução Francesa. Apelidado “O Incorruptível”, por sua rigidez moral. Dominando a anarquia revolucionária, impôs-se como ditador da França e instalou o “Grande Terror”, com a eliminação dos partidos da oposição. Uma coligação de moderados derrubou-o, julgou-o por crimes contra o povo e o condenou à guilhotina, com outros seguidores. Poema datado de 1883. (CUNHA, 2005, p. 28)

 

(6). Terror: nome dado a dois períodos da Revolução Francesa: o Primeiro Terror (agosto e setembro de_1792) se caracterizou pela prisão do rei Luís XVI, quando ele fugia para a Áustria, e a consequente invasão da França pela Prússia. O Segundo Terror (setembro de 1793 a julho de 1794) caracterizou-se pela ditadura de Robespierre, a eliminação do partido dos girondinos (moderados) e o julgamento perante o Tribunal Revolucionário de numerosos suspeitos de atividades contrarrevolucionárias e de oposição a Robespierre, com a condenação à guilhotina de muitos deles. O regime despótico de Robespierre acabou levando-o, igualmente, a ser deposto e guilhotinado. (CUNHA, 2005, p. 28)

 

(7). Veja a nota n° 2, mais acima. (CUNHA, 2005, p. 28)

 

(8). Saint-Just: político francês (1767-1794). Deputado na Convenção (1792), amigo de Robespierre. Membro do partido radical (jacobinos). Advogou a execução do rei, sem julgamento, e bateu-se por uma república igualitarista. Foi apelidado de “O Teórico do Terror”. Ministro do Exército, foi derrubado do poder com Robespierre e foi, com este, condenado à guilhotina. (CUNHA, 2005, p. 30)

 

(9). “Um discurso de Saint-Just dava, imediatamente, um caráter terrível ao debate...” (CUNHA, 2005, p. 30)

 

(10). Pungir: causar grande dor moral. (CUNHA, 2005, p. 30)

 

(11). Cortesãos sequazes: aduladores, bajuladores que seguem atrás do rei; que vivem na Corte ou nos palácios dos nobres e governantes, à custa de elogios aos que estão no poder; “puxa-sacos”. (CUNHA, 2005, p. 30)

 

(12). Esses quatro sonetos dedicados a Danton, Marat, Robespierre e Saint-Just refletem bem a admiração de Euclides pela Revolução Francesa, o ideal republicano e as figuras históricas por ele celebradas. Deve-se essa predileção às influências do prof. Caldeira, português, antimonarquista (que se mudou para o Brasil, por motivos políticos), fundador e diretor do Colégio Caldeira, na cidade de São Fidélis, na antiga província do Rio de Janeiro, onde Euclides cursou o segundo grau. (CUNHA, 2005, p. 31)

 

Referência:

 

CUNHA, Euclides. Ondas. Organização, pesquisa e notas de Adelino Brandão. São Paulo, SP: Martin Claret, 2005.

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