Em linhas imbricadas
e de sentido, parece-me, no mínimo ambíguo, esta “Composição” de Melo Neto
leva-nos a associar o que se descreve no poema tanto a uma perspectiva musical
(“vitrolas errantes” fazem parte da mescla), quanto ao próprio ato de se
redigir os versos – algo surrealistas em sua atmosfera onírica, meio ilógica, carente
de um escopo manifestamente racional –, ou ainda como se o poeta houvesse transcrito
em palavras o que se estampava numa espécie de natureza-morta.
Em meio a todo o
conjunto – frutas decapitadas, mapas, aves, vitrolas, flores etc. –, cujo
centro de gravidade dificilmente se é capaz de descortinar, surge a dor do
sujeito lírico, que a tudo contempla imerso em prantos absconsos, mas fluentes
em “noites apagadas”.
E nada obstante, aflorou-me
agora uma hipótese factível a sugerir coesão para as imagens capturadas pelo poeta:
o falante estaria num presumível cômodo de sua residência, a contemplar coisas
que se dispõem no ambiente, bem assim outras tantas que descortina através de
uma janela aberta – nuvens, flores, trilhos, mesmo as chuvas que se metaforizam
nos aludidos prantos transmutados às suas dores íntimas.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo
Neto
(1920-1999)
Composição
Frutas decapitadas,
mapas,
aves que prendi sob o
chapéu,
não sei que vitrolas
errantes,
a cidade que nasce e
morre,
no teu olho a flor,
trilhos
que me abandonam,
jornais
que me chegam pela
janela
repetem os gestos
obscenos
que vejo fazerem as
flores
me vigiando em noites
apagadas
onde nuvens
invariavelmente
chovem prantos que
não digo.
Em: “Pedra do Sono”
(1942)
Brunida à cera de
abelha
(Casey Weldon:
artista norte-americano)
Referência:
MELO Neto, João
Cabral de. Composição. In: __________. Obra Completa. Organização por
Marly de Oliveira. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar,1994. p. 52.
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