Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 23 de abril de 2022

Jorge Luis Borges - Insônia

Memórias que não se apagam, de dias recentes ou remotos, em noites sem conciliar o sono, transportam o falante a uma espécie de vigília por tempo indefinido, com torturante pretensão de eternidade: não poder dormir compara-se a não poder esquecer e, sobretudo – presume-se – olvidar certas imagens que não denotam um sentido de equilíbrio ou de beleza, pois que execráveis.

 

Há recordações da cidade de Buenos de Aires – pátios, subúrbios, becos, pampa –, em especial, lugares nos arrabaldes da urbe, seus confins com feição mais precária, visitados certamente por Borges, quem sabe durante esses ciclos de insônia: a realidade – por vezes nefanda –, mais que o sonho, povoa-lhe a mente, revolvendo um conteúdo que, reelaborado, regressa às páginas desse grande escritor, ele próprio um símile de sua personagem “Funes, o memorioso”. (rs)

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge Luis Borges

(1899-1986)

 

Insomnio

 

De fierro,

de encorvados tirantes de enorme fierro tiene que ser la noche,

para que no la revienten y la desfonden

las muchas cosas que mis abarrotados ojos han visto,

las duras cosas que insoportablemente la pueblan.

 

Mi cuerpo ha fatigado los niveles, las temperaturas, las luces:

en vagones de largo ferrocarril,

en un banquete de hombres que se aborrecen,

en el filo mellado de los suburbios

en una quinta calurosa de estatuas húmedas,

en la noche repleta donde abundan el caballo y el hombre.

 

El universo de esta noche tiene la vastedad

del olvido y la precisión de la fiebre.

 

En vano quiero distraerme de mi cuerpo

y del desvelo de un espejo incesante

que lo prodiga y que lo acecha

y de la casa que repite sus patios

y del mundo que sigue hasta un despedazado arrabal

de callejones donde el viento se cansa y de barro torpe.

 

En vano espero

las desintegraciones y los símbolos que preceden el sueño.

 

Sigue la historia universal:

los rumbos minuciosos de la muerte en las caries dentales,

la circulación de mi sangre y de los planetas.

 

(He odiado el agua crapulosa de un charco,

he aborrecido en el atardecer el canto del pájaro.)

 

Las fatigadas leguas incesantes del suburbio del Sur,

leguas de pampa basurera y obscena, leguas de execración,

no se quieren ir del recuerdo.

Lotes anegadizos, ranchos en montón como perros, charcos

de plata fétida:

soy el aborrecible centinela de esas colocaciones inmóviles.

 

Alambre, terraplenes, papeles muertos, sobras de

Buenos Aires.

 

Creo esta noche en la terrible inmortalidad:

ningún hombre ha muerto en el tiempo, ninguna mujer,

ningún muerto,

porque esta inevitable realidad de fierro y de barro

tiene que atravesar la indiferencia de cuantos estén dormidos

o muertos

– aunque se oculten en la corrupción y en los siglos –

y condenarlos a vigilia espantosa.

 

Toscas nubes color borra de vino infamarán el cielo;

amanecerá en mis párpados apretados.

 

Adrogué, 1936

 

En: “El otro, el mismo” (1964)

 

Noites de insônia

(Joseph Oland: artista norte-americano)

 

Insônia

 

De ferro,

de encurvados tirantes de ferro enorme tem que ser a noite,

para que não a rebentem e a desfundem

as muitas coisas que meus abarrotados olhos viram,

as duras coisas que insuportavelmente a povoam.

 

Meu corpo fatigou os níveis, as temperaturas, as luzes:

em vagões de longa via férrea,

em um banquete de homens que não se suportam,

na orla denteada dos subúrbios,

em uma abafada quinta de estátuas úmidas,

na noite repleta onde abundam o cavalo e o homem.

 

O universo desta noite tem a vastidão

do olvido e a precisão da febre.

 

Em vão, quero distrair-me de meu corpo

e do desvelo de um espelho incessante,

que o prodigaliza e que o espreita,

e da casa que repete seus pátios

e do mundo que segue até um despedaçado arrabalde

de becos onde o vento se cansa e de barro torpe.

 

Em vão, espero

as desintegrações e os símbolos que precedem o sonho.

 

Segue a história universal:

os rumos minuciosos da morte nas cáries dentárias,

a circulação de meu sangue e dos planetas.

 

(Odiei a água crapulosa de um charco,

detestei, ao entardecer, o canto do pássaro.)

 

As cansativas e incessantes léguas do subúrbio ao sul,

léguas de pampa montureira e obscena, léguas de execração,

não querem sair da memória.

Lotes alagadiços, ranchos amontoados como cães, charcos

de prata fétida:

sou a abominável sentinela desses domínios imóveis.

 

Arame, aterros, papéis mortos, sobras de Buenos Aires.

 

Creio, esta noite, na terrível imortalidade:

nenhum homem morreu no tempo, nenhuma mulher,

nenhum morto,

porque esta inevitável realidade de ferro e de barro

tem que atravessar a indiferença de quantos estejam

adormecidos ou mortos

– ainda que se ocultem na corrupção e nos séculos –

e condená-los a uma desmesurada vigília.

 

Toscas nuvens cor borra de vinho hão de enodoar o céu;

amanhecerá em minhas premidas pálpebras.

 

Adrogué, 1936

 

Em: “O outro, o mesmo” (1964)

 

Referência:

 

BORGES, Jorge Luis. Insomnio. In: __________. Obra poética:  1923-1977. Segunda edición (ampliada). Madrid, ES: Alianza Tres (por autorización de Emecé Editores), 1981. p. 177-178.

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