Memórias que não se
apagam, de dias recentes ou remotos, em noites sem conciliar o sono, transportam
o falante a uma espécie de vigília por tempo indefinido, com torturante
pretensão de eternidade: não poder dormir compara-se a não poder esquecer e, sobretudo
– presume-se – olvidar certas imagens que não denotam um sentido de equilíbrio ou
de beleza, pois que execráveis.
Há recordações da
cidade de Buenos de Aires – pátios, subúrbios, becos, pampa –, em especial,
lugares nos arrabaldes da urbe, seus confins com feição mais precária, visitados
certamente por Borges, quem sabe durante esses ciclos de insônia: a realidade –
por vezes nefanda –, mais que o sonho, povoa-lhe a mente, revolvendo um conteúdo
que, reelaborado, regressa às páginas desse grande escritor, ele próprio um
símile de sua personagem “Funes, o memorioso”. (rs)
J.A.R. – H.C.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Insomnio
De fierro,
de encorvados
tirantes de enorme fierro tiene que ser la noche,
para que no la
revienten y la desfonden
las muchas cosas que
mis abarrotados ojos han visto,
las duras cosas que
insoportablemente la pueblan.
Mi cuerpo ha fatigado
los niveles, las temperaturas, las luces:
en vagones de largo
ferrocarril,
en un banquete de
hombres que se aborrecen,
en el filo mellado de
los suburbios
en una quinta
calurosa de estatuas húmedas,
en la noche repleta
donde abundan el caballo y el hombre.
El universo de esta
noche tiene la vastedad
del olvido y la precisión
de la fiebre.
En vano quiero
distraerme de mi cuerpo
y del desvelo de un
espejo incesante
que lo prodiga y que
lo acecha
y de la casa que
repite sus patios
y del mundo que sigue
hasta un despedazado arrabal
de callejones donde
el viento se cansa y de barro torpe.
En vano espero
las desintegraciones
y los símbolos que preceden el sueño.
Sigue la historia
universal:
los rumbos minuciosos
de la muerte en las caries dentales,
la circulación de mi
sangre y de los planetas.
(He odiado el agua
crapulosa de un charco,
he aborrecido en el
atardecer el canto del pájaro.)
Las fatigadas leguas
incesantes del suburbio del Sur,
leguas de pampa
basurera y obscena, leguas de execración,
no se quieren ir del
recuerdo.
Lotes anegadizos,
ranchos en montón como perros, charcos
de plata fétida:
soy el aborrecible
centinela de esas colocaciones inmóviles.
Alambre, terraplenes,
papeles muertos, sobras de
Buenos Aires.
Creo esta noche en la
terrible inmortalidad:
ningún hombre ha
muerto en el tiempo, ninguna mujer,
ningún muerto,
porque esta
inevitable realidad de fierro y de barro
tiene que atravesar
la indiferencia de cuantos estén dormidos
o muertos
– aunque se oculten
en la corrupción y en los siglos –
y condenarlos a
vigilia espantosa.
Toscas nubes color
borra de vino infamarán el cielo;
amanecerá en mis párpados
apretados.
Adrogué, 1936
En: “El otro, el
mismo” (1964)
Noites de insônia
(Joseph Oland:
artista norte-americano)
Insônia
De ferro,
de encurvados tirantes
de ferro enorme tem que ser a noite,
para que não a
rebentem e a desfundem
as muitas coisas que
meus abarrotados olhos viram,
as duras coisas que
insuportavelmente a povoam.
Meu corpo fatigou os
níveis, as temperaturas, as luzes:
em vagões de longa
via férrea,
em um banquete de
homens que não se suportam,
na orla denteada dos
subúrbios,
em uma abafada quinta
de estátuas úmidas,
na noite repleta onde
abundam o cavalo e o homem.
O universo desta
noite tem a vastidão
do olvido e a precisão
da febre.
Em vão, quero
distrair-me de meu corpo
e do desvelo de um
espelho incessante,
que o prodigaliza e
que o espreita,
e da casa que repete
seus pátios
e do mundo que segue
até um despedaçado arrabalde
de becos onde o vento
se cansa e de barro torpe.
Em vão, espero
as desintegrações e
os símbolos que precedem o sonho.
Segue a história
universal:
os rumos minuciosos
da morte nas cáries dentárias,
a circulação de meu
sangue e dos planetas.
(Odiei a água
crapulosa de um charco,
detestei, ao entardecer,
o canto do pássaro.)
As cansativas e
incessantes léguas do subúrbio ao sul,
léguas de pampa montureira
e obscena, léguas de execração,
não querem sair da
memória.
Lotes alagadiços, ranchos
amontoados como cães, charcos
de prata fétida:
sou a abominável
sentinela desses domínios imóveis.
Arame, aterros,
papéis mortos, sobras de Buenos Aires.
Creio, esta noite, na
terrível imortalidade:
nenhum homem morreu
no tempo, nenhuma mulher,
nenhum morto,
porque esta
inevitável realidade de ferro e de barro
tem que atravessar a
indiferença de quantos estejam
adormecidos ou mortos
– ainda que se
ocultem na corrupção e nos séculos –
e condená-los a uma
desmesurada vigília.
Toscas nuvens cor
borra de vinho hão de enodoar o céu;
amanhecerá em minhas premidas
pálpebras.
Adrogué, 1936
Em: “O outro, o
mesmo” (1964)
Referência:
BORGES, Jorge Luis.
Insomnio. In: __________. Obra poética: 1923-1977. Segunda edición (ampliada). Madrid,
ES: Alianza Tres (por autorización de Emecé Editores), 1981. p. 177-178.
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