O ente lírico
contempla a vida a partir de um ponto, presume-se, já avançado em seus dias,
confrontando com destemor a morte e a realidade de seu ser transitório: assim
ficam mais vívidos os traços de alguém que passa pela existência
metabolizando-a como se uma espécie de sonho fosse, em cujos zéfiros faz pairar
a sua altaneira pandorga.
As imagens a que o poeta
recorre sintetizam o que se toma como o ciclo vital e o seu caráter efêmero a
se exaurir no precário, perante o qual o falante renuncia a apegar-se: é a
tomada de consciência muito à maneira oriental, a aspiração por uma forma de se
expressar, desde já, em consonância com a premência imposta pelo fluxo
irreversível do tempo.
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
O Homem Vivo
Felicito-me a mim
mesmo por ser transitório.
Sempre tive medo da
eternidade,
esse grande cão
obscuro que me farejava as pernas
e me seguia sem
morder.
Aguardando a morte
como quem espera uma carta
trazida por um
estafeta divino,
nada tenho para as
festas do dia seguinte.
Toda a minha vida foi
este esperar sem fim.
Entre o sono e o mar
total, na paisagem celeste,
soltei minha pandorga.
Vi o farol da minha
terra, e minha infância inteira
estirada em cem
léguas diante do mar.
Nada quero de ti,
Morte, nem mesmo
as recompensas de
outro lado
com que amenizas o
fim dos que muito sofreram.
Dá-me apenas o sono
inteiriço dos que morrem
e são levados à terra
dos pés juntos.
Que a vida seja um
sonho, e os sonhos sejam sonhos
do sonho desdobrado
dos que vivem.
Efêmero, bate no
tempo um coração solitário
e a sombra da terra é
pouca para escondê-lo.
Em: “Linguagem”
(1950-1951)
Os homens existem
pelo bem dos demais.
Ensina-os então ou...
(Jacob Lawrence:
pintor norte-americano)
Referência:
IVO, Lêdo. O homem
vivo. In: __________. Central poética: poemas escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Nova
Aguilar; Brasília, DF: INL, 1976. p. 98. (‘Manancial’; v. 48)
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