Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Lêdo Ivo - O Homem Vivo

O ente lírico contempla a vida a partir de um ponto, presume-se, já avançado em seus dias, confrontando com destemor a morte e a realidade de seu ser transitório: assim ficam mais vívidos os traços de alguém que passa pela existência metabolizando-a como se uma espécie de sonho fosse, em cujos zéfiros faz pairar a sua altaneira pandorga.

 

As imagens a que o poeta recorre sintetizam o que se toma como o ciclo vital e o seu caráter efêmero a se exaurir no precário, perante o qual o falante renuncia a apegar-se: é a tomada de consciência muito à maneira oriental, a aspiração por uma forma de se expressar, desde já, em consonância com a premência imposta pelo fluxo irreversível do tempo.

 

J.A.R. – H.C.

 

Lêdo Ivo

(1924-2012)

 

O Homem Vivo

 

Felicito-me a mim mesmo por ser transitório.

Sempre tive medo da eternidade,

esse grande cão obscuro que me farejava as pernas

e me seguia sem morder.

 

Aguardando a morte como quem espera uma carta

trazida por um estafeta divino,

nada tenho para as festas do dia seguinte.

Toda a minha vida foi este esperar sem fim.

 

Entre o sono e o mar total, na paisagem celeste,

soltei minha pandorga.

Vi o farol da minha terra, e minha infância inteira

estirada em cem léguas diante do mar.

 

Nada quero de ti, Morte, nem mesmo

as recompensas de outro lado

com que amenizas o fim dos que muito sofreram.

Dá-me apenas o sono inteiriço dos que morrem

e são levados à terra dos pés juntos.

 

Que a vida seja um sonho, e os sonhos sejam sonhos

do sonho desdobrado dos que vivem.

Efêmero, bate no tempo um coração solitário

e a sombra da terra é pouca para escondê-lo.

 

Em: “Linguagem” (1950-1951)

 

Os homens existem pelo bem dos demais.

Ensina-os então ou...

(Jacob Lawrence: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

IVO, Lêdo. O homem vivo. In: __________. Central poética: poemas escolhidos. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar; Brasília, DF: INL, 1976. p. 98. (‘Manancial’; v. 48)

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