Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Paul Claudel - O Crucifixo – II. A cabeça vista da esquerda

Um poema que se atém à comum simbologia subsumida aos textos bíblicos – a direita como símbolo de retidão, justiça e santidade, em harmonia com o espiritual e o viver eterno, e a esquerda, diversamente, de imprecações, ludíbrios e trevas, associada à mundanidade e à finitude.

 

Não sem motivos, Cristo, já morto na cruz, quase sempre é representado com a cabeça a tombar para a direita do seu corpo – para a esquerda do observador, portanto –, pois já teria entrado no domínio da eternidade, levando consigo as promessas enunciadas ao “bom ladrão” Dimas, postado exatamente daquele lado.

 

Interessantes são as correlações deduzidas por Claudel ao instante mesmo em que, segundo os relatos do Gênesis, José teria reconhecido os seus irmãos no Egito, mas que somente deu-se a reconhecer depois que ordenou a retirada dos demais presentes à audiência: de um lado estariam as provas terrenais, num mundo de intemperanças que devem ser superadas para que, do outro, colham-se proveitos de pureza e de vida eterna.

 

J.A.R. – H.C.

 

Paul Claudel

(1868-1955)

  

Le Crucifix

II. La tête vue de la gauche

 

Il est écrit au livre de la Genèse, en cette histoire qui est toute pleine de mystères,

Que Joseph après le long séjour en Egypte quand on lit qu’il eut retrouvé ses frères,

Fit sortir toute l’assistance avant qu’il ne leur manifestât sa face:

(Egypte, qui est les ténèbres en hébreu, c’est cette terre par excellence où nous sommes, sombre et basse).

Car il ne convenait pas que quelqu’un fût présent à cet instant sacré

Du frère qui s’est retourné vers nous et nous invite à le dévisager.

Ainsi le Christ a voulu, parce que leur cœur était fort, ou peut-être qu’un amour trop grand en fut la cause,

A combien de saints et de saintes ici-bas ne se montrer que du côté gauche.

Tout ce qu’ils font, il feint de ne pas l’avoir regardé.

Quand ils prient, on dirait qu’il écoute ailleurs et son front demeure détourné.

Mais eux savent et sourient et ne prennent pas le change,

Et retournent paisiblement à la semaille et à la vendange.

Car à celui qui croit la foi suffit.

Ce que l’éternité nous réserve, il n’y a pas besoin de le voir en cette vie.

Bons serviteurs, vous savez votre devoir, c’est assez.

La lumière suffisante est avec vous et le chemin est tout tracé.

Et cet instant où votre Créateur vers vous se retourne avec ces yeux où la colère n’est point,

Il n’a voulu ni des hommes ni des anges pour en être les témoins.

 

Dans: “Poèmes de guerre” (1915-1916)

 

Cristo na Cruz

(Eugène Delacroix: pintor francês)

 

O Crucifixo

II. A cabeça vista da esquerda

 

Está escrito no livro da Gênese, nessa história cheia de um mistério infinito,

que José quando se lê que encontrou os irmãos, depois de longa permanência no Egito

fez sair toda a assistência, antes de lhes manifestar a face:

(Egito, que em hebreu quer dizer trevas, é por excelência esta terra em que vivemos, escura e baixa)

pois não convinha que alguém estivesse presente naquele instante sagrado,

do irmão que se virou para nós e pediu para ser encarado.

Assim quis o Cristo, porque era forte o coração deles, ou talvez num amor imenso esteja o segredo,

a muitos santos e santas aqui em baixo só se mostrar do lado esquerdo.

Tudo o que estes fazem, simula não ter reparado.

Quando rezam, dir-se-ia que escuta outra coisa, e seu rosto permanece voltado.

Mas eles sabem, sorriem, e nenhum se lastima,

e voltam tranquilamente para a semeadura e a vindima,

pois àquele que crê, a fé é suficiente.

O que a eternidade nos reserva, não é preciso vê-lo nesta vida presente.

Bons servidores, conheceis vosso dever, e é bastante.

A necessária luz é convosco e o caminho traçado de avante.

E quando vosso Criador se volta para vós, com seu olhar em que a cólera não mora,

Ele não quer nem que os homens nem que os anjos sejam testemunhas dessa hora.

 

Em: “Poemas de guerra” (1915-1916)

 

Referências:

 

Em Francês

 

CLAUDEL, Paul. Le crucifix – II. La tête vue de la gauche. In: __________. Oeuvre Poétique. Introduction par Stanislas Fumet. Paris, FR: Gallimard, 1967. p. 547.

 

Em Português

 

CLAUDEL, Paul. O crucifixo – II. A cabeça vista da esquerda. Tradução de Carlos Drummond de Andrade. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 226-227.

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