Um poema que se atém
à comum simbologia subsumida aos textos bíblicos – a direita como símbolo de
retidão, justiça e santidade, em harmonia com o espiritual e o viver eterno, e
a esquerda, diversamente, de imprecações, ludíbrios e trevas, associada à mundanidade
e à finitude.
Não sem motivos,
Cristo, já morto na cruz, quase sempre é representado com a cabeça a tombar
para a direita do seu corpo – para a esquerda do observador, portanto –, pois
já teria entrado no domínio da eternidade, levando consigo as promessas
enunciadas ao “bom ladrão” Dimas, postado exatamente daquele lado.
Interessantes são as
correlações deduzidas por Claudel ao instante mesmo em que, segundo os relatos
do Gênesis, José teria reconhecido os seus irmãos no Egito, mas que somente
deu-se a reconhecer depois que ordenou a retirada dos demais presentes à
audiência: de um lado estariam as provas terrenais, num mundo de intemperanças
que devem ser superadas para que, do outro, colham-se proveitos de pureza e de
vida eterna.
J.A.R. – H.C.
Paul Claudel
(1868-1955)
Le Crucifix
II. La tête vue de la
gauche
Il est écrit au livre
de la Genèse, en cette histoire qui est toute pleine de mystères,
Que Joseph après le
long séjour en Egypte quand on lit qu’il eut retrouvé ses frères,
Fit sortir toute l’assistance
avant qu’il ne leur manifestât sa face:
(Egypte, qui
est les ténèbres en hébreu, c’est cette terre par excellence où nous
sommes, sombre et basse).
Car il ne convenait
pas que quelqu’un fût présent à cet instant sacré
Du frère qui s’est
retourné vers nous et nous invite à le dévisager.
Ainsi le Christ a
voulu, parce que leur cœur était fort, ou peut-être qu’un amour trop grand en
fut la cause,
A combien de saints
et de saintes ici-bas ne se montrer que du côté gauche.
Tout ce qu’ils font,
il feint de ne pas l’avoir regardé.
Quand ils prient, on
dirait qu’il écoute ailleurs et son front demeure détourné.
Mais eux savent et
sourient et ne prennent pas le change,
Et retournent
paisiblement à la semaille et à la vendange.
Car à celui qui croit
la foi suffit.
Ce que l’éternité
nous réserve, il n’y a pas besoin de le voir en cette vie.
Bons serviteurs, vous
savez votre devoir, c’est assez.
La lumière suffisante
est avec vous et le chemin est tout tracé.
Et cet instant où
votre Créateur vers vous se retourne avec ces yeux où la colère n’est point,
Il n’a voulu ni des
hommes ni des anges pour en être les témoins.
Dans: “Poèmes de
guerre” (1915-1916)
Cristo na Cruz
(Eugène Delacroix:
pintor francês)
O Crucifixo
II. A cabeça vista da
esquerda
Está escrito no livro
da Gênese, nessa história cheia de um mistério infinito,
que José quando se lê
que encontrou os irmãos, depois de longa permanência no Egito
fez sair toda a
assistência, antes de lhes manifestar a face:
(Egito, que em
hebreu quer dizer trevas, é por excelência esta terra em que vivemos, escura e
baixa)
pois não convinha que
alguém estivesse presente naquele instante sagrado,
do irmão que se virou
para nós e pediu para ser encarado.
Assim quis o Cristo,
porque era forte o coração deles, ou talvez num amor imenso esteja o segredo,
a muitos santos e
santas aqui em baixo só se mostrar do lado esquerdo.
Tudo o que estes
fazem, simula não ter reparado.
Quando rezam,
dir-se-ia que escuta outra coisa, e seu rosto permanece voltado.
Mas eles sabem,
sorriem, e nenhum se lastima,
e voltam
tranquilamente para a semeadura e a vindima,
pois àquele que crê,
a fé é suficiente.
O que a eternidade
nos reserva, não é preciso vê-lo nesta vida presente.
Bons servidores,
conheceis vosso dever, e é bastante.
A necessária luz é
convosco e o caminho traçado de avante.
E quando vosso
Criador se volta para vós, com seu olhar em que a cólera não mora,
Ele não quer nem que
os homens nem que os anjos sejam testemunhas dessa hora.
Em: “Poemas de
guerra” (1915-1916)
Referências:
Em Francês
CLAUDEL, Paul. Le crucifix
– II. La tête vue de la gauche. In: __________. Oeuvre Poétique. Introduction
par Stanislas Fumet. Paris, FR: Gallimard, 1967. p. 547.
Em Português
CLAUDEL, Paul. O
crucifixo – II. A cabeça vista da esquerda. Tradução de Carlos Drummond de
Andrade. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e notas). Obras-primas da poesia
universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p.
226-227.
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