Rivera plasma em
versos a realidade do trabalhador assalariado, vendo o já minguado estipêndio esvair-se,
em termos reais, em face do processo inflacionário, sem poder de compra para sequer
manter-se bem alimentado e aos seus: se duvidar, trata-se de um salário-mínimo
(ou nem isso!) que não cumpre, com o seu valor, as garantias da própria condição
balizadora pela qual se define na doutrina laboral.
Somos um país miserando
em que a maior parte da população não dispõe de um mínimo em saúde de qualidade
(e o ‘lobby’ dos serviços privados de saúde não deixa por menos, atentando
contra o S.U.S.!), educação (qual país chegou ao primeiro mundo relegando a um
plano prescindível a instrução primária e secundária?!), e moradia (as cidades
do país são o rematado cenário onde campeiam favelas e cortiços!), como que a
ratificar a mantença de um regime de opressão que pouca diferença evidencia à díade
‘Casa Grande x Senzala’.
Indignidades,
desigualdade de renda, multidões que sequer conseguem redigir o próprio nome,
porque iletradas: Brasil, olha a tua cara!
Comentário por
Leodegário A. de Azevedo Filho
(AZEVEDO FILHO, 1972,
p. 30-31)
O tema da inflação e
do drama do proletariado em face da desvalorização da moeda é o que se tem
aqui. A sua adjetivação é expressiva, como em “moedas vermelhas”, sugerindo a cor
do sangue em relação ao trabalho do operário. Um mundo mecanizado reduz o
trabalhador a simples número. O salário baixo transforma os operários em
“mendigos em fila”. Certos traços surrealistas aparecem no poema: “a rosa
crescendo, um cão no alpendre, um peixe no azul”. Imagens expressionistas como
a dos “algarismos que se dobram como acrobatas na cena”. O drama sempre expresso
em linguagem surrealista: “Vejo piscinas no céu, / autos voando, navios /
partindo para o nunca mais.” Ironia ao capitalismo: “Adivinho / a alegria dos
meus donos.” Valorização do visual: “Observo de novo as cédulas: / retratos de
heróis, cidades, / as guanabaras em flor...” Força expressiva de linguagem
poética: “o soluço aos pés na pedra.” Ou então: “mastigo a dor em silêncio.”
Tudo isso, em suma, confere à língua literária de Bueno de Rivera certas
qualidades de estilo, como a nitidez de expressão e a riqueza de imagens, dois
postulados estéticos muito procurados pelo grupo a que pertence. Os versos são
medidos e ritmados conforme a técnica do verso de redondilha maior, os mais
espontâneos que existem em nossa língua e os mais tradicionais. Em relação a esse
poeta nos parece adequado falar-se em disciplina formal.
J.A.R. – H.C.
Bueno de Rivera
(1911-1982)
A Mão Recebe o
Salário
A face da lua negra
sobre as moedas
vermelhas,
o pagador nos espera.
Somos apenas um
número
e a dívida. Vamos em
fila
como os mendigos num
sábado.
Lá fora, o pássaro
voando,
a rosa crescendo, um
cão
no alpendre, um peixe
no azul.
Nosso nome declamado.
Os algarismos se
dobram
como acrobatas na
cena.
A mão recebe o
salário,
confere as cédulas:
não chegai
Não chega! O mundo
escurece...
Vejo piscinas no céu,
autos voando, navios
partindo para o nunca
mais.
Escuto as risadas
amplas
no prédio ao lado.
Adivinho
a alegria dos meus
donos.
Observo de novo as cédulas:
retratos de heróis,
cidades,
as guanabaras em
flor...
Cédulas inúteis, não
cobrem
a dor dos dias
perdidos.
Conto de novo, não
chega...
Volto ao lar como um
vencido.
O vento do sul nos
cabelos,
o soluço dos pés na
pedra.
Vergonha das mãos
vazias.
Penso no filho, a
merenda
escolar entre os
cadernos.
Vejo a mulher, mão no
rosto,
os olhos na esquina à
espera
de um vulto lento na
tarde.
E o brinquedo, meu
filho?
Mulher doente, e o
remédio?
Quero gritar mas não
devo.
Brusco, atravesso a
sala,
sento à mesa, peço o
prato,
mastigo a dor em
silêncio.
Mãe e filho chegam
tímidos,
sentam-se ao lado, me
olham.
Calados
compreenderão.
Em: “Luz do Pântano” (1948)
São Jerônimo no
deserto
(Leonardo da Vinci:
pintor italiano)
Referência:
RIVERA, Bueno de. A
mão recebe o salário. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de (Organização e
Introdução Geral). Brasília, DF: Poetas do modernismo: antologia
crítica. Vol. VI. Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do
Livro (MEC/INL), 1972. p. 29-30. (‘Coleção de Literatura Brasileira’; n. 9F)
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