Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 3 de abril de 2022

Bueno de Rivera - A Mão Recebe o Salário

Rivera plasma em versos a realidade do trabalhador assalariado, vendo o já minguado estipêndio esvair-se, em termos reais, em face do processo inflacionário, sem poder de compra para sequer manter-se bem alimentado e aos seus: se duvidar, trata-se de um salário-mínimo (ou nem isso!) que não cumpre, com o seu valor, as garantias da própria condição balizadora pela qual se define na doutrina laboral.

 

Somos um país miserando em que a maior parte da população não dispõe de um mínimo em saúde de qualidade (e o ‘lobby’ dos serviços privados de saúde não deixa por menos, atentando contra o S.U.S.!), educação (qual país chegou ao primeiro mundo relegando a um plano prescindível a instrução primária e secundária?!), e moradia (as cidades do país são o rematado cenário onde campeiam favelas e cortiços!), como que a ratificar a mantença de um regime de opressão que pouca diferença evidencia à díade ‘Casa Grande x Senzala’.

 

Indignidades, desigualdade de renda, multidões que sequer conseguem redigir o próprio nome, porque iletradas: Brasil, olha a tua cara!

 

Comentário por Leodegário A. de Azevedo Filho

(AZEVEDO FILHO, 1972, p. 30-31)

 

O tema da inflação e do drama do proletariado em face da desvalorização da moeda é o que se tem aqui. A sua adjetivação é expressiva, como em “moedas vermelhas”, sugerindo a cor do sangue em relação ao trabalho do operário. Um mundo mecanizado reduz o trabalhador a simples número. O salário baixo transforma os operários em “mendigos em fila”. Certos traços surrealistas aparecem no poema: “a rosa crescendo, um cão no alpendre, um peixe no azul”. Imagens expressionistas como a dos “algarismos que se dobram como acrobatas na cena”. O drama sempre expresso em linguagem surrealista: “Vejo piscinas no céu, / autos voando, navios / partindo para o nunca mais.” Ironia ao capitalismo: “Adivinho / a alegria dos meus donos.” Valorização do visual: “Observo de novo as cédulas: / retratos de heróis, cidades, / as guanabaras em flor...” Força expressiva de linguagem poética: “o soluço aos pés na pedra.” Ou então: “mastigo a dor em silêncio.” Tudo isso, em suma, confere à língua literária de Bueno de Rivera certas qualidades de estilo, como a nitidez de expressão e a riqueza de imagens, dois postulados estéticos muito procurados pelo grupo a que pertence. Os versos são medidos e ritmados conforme a técnica do verso de redondilha maior, os mais espontâneos que existem em nossa língua e os mais tradicionais. Em relação a esse poeta nos parece adequado falar-se em disciplina formal.

 

J.A.R. – H.C.

 

Bueno de Rivera

(1911-1982)

 

A Mão Recebe o Salário

 

A face da lua negra

sobre as moedas vermelhas,

o pagador nos espera.

 

Somos apenas um número

e a dívida. Vamos em fila

como os mendigos num sábado.

 

Lá fora, o pássaro voando,

a rosa crescendo, um cão

no alpendre, um peixe no azul.

 

Nosso nome declamado.

Os algarismos se dobram

como acrobatas na cena.

 

A mão recebe o salário,

confere as cédulas: não chegai

Não chega! O mundo escurece...

 

Vejo piscinas no céu,

autos voando, navios

partindo para o nunca mais.

 

Escuto as risadas amplas

no prédio ao lado. Adivinho

a alegria dos meus donos.

 

Observo de novo as cédulas:

retratos de heróis, cidades,

as guanabaras em flor...

 

Cédulas inúteis, não cobrem

a dor dos dias perdidos.

Conto de novo, não chega...

 

Volto ao lar como um vencido.

O vento do sul nos cabelos,

o soluço dos pés na pedra.

 

Vergonha das mãos vazias.

Penso no filho, a merenda

escolar entre os cadernos.

 

Vejo a mulher, mão no rosto,

os olhos na esquina à espera

de um vulto lento na tarde.

 

E o brinquedo, meu filho?

Mulher doente, e o remédio?

Quero gritar mas não devo.

 

Brusco, atravesso a sala,

sento à mesa, peço o prato,

mastigo a dor em silêncio.

 

Mãe e filho chegam tímidos,

sentam-se ao lado, me olham.

Calados compreenderão.

 

Em: “Luz do Pântano” (1948)

 

São Jerônimo no deserto

(Leonardo da Vinci: pintor italiano)

 

Referência:

 

RIVERA, Bueno de. A mão recebe o salário. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de (Organização e Introdução Geral). Brasília, DF: Poetas do modernismo: antologia crítica. Vol. VI. Ministério da Educação e Cultura / Instituto Nacional do Livro (MEC/INL), 1972. p. 29-30. (‘Coleção de Literatura Brasileira’; n. 9F)

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