A poetisa emprega todo o poder de sua imaginação para forçar-se à
memória dos seres amados que passaram em sua vida, agora presentes em elementos
– viventes ou não – à sua volta, ou como ela mesma se expressa, em “trajos de
circunstância”.
Convertidos ou apenas associados às coisas avocadas ao longo do poema, pouco
importa. O relevante é que, mesmo sem comunicação, as memórias persistem e vêm
ao nosso encalço, para nos instilar um colírio reflexivo – essa mirada aturdida
em direção ao espelho e à história.
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Memória
A José Osório
Minha família anda
longe,
com trajos de
circunstância:
uns converteram-se em
flores,
outros em pedra,
água, líquen;
alguns, de tanta
distância,
nem têm vestígios que
indiquem
uma certa orientação.
Minha família anda
longe,
– na Terra, na Lua,
em Marte –
uns dançando pelos
ares,
outros perdidos no
chão.
Tão longe a minha
família!
Tão dividida em
pedaços!
Um pedaço em cada
parte…
Pelas esquinas do
tempo,
brincam meus irmãos
antigos:
uns anjos, outros
palhaços…
Seus vultos de
labareda
rompem-se como
retratos
feitos em papel de
seda.
Vejo lábios, vejo
braços,
– por um momento
persigo-os;
de repente, os mais
exatos
perdem sua exatidão.
Se falo, nada
responde.
Depois, tudo vira
vento,
e nem o meu
pensamento
pode compreender por
onde
passaram nem onde
estão.
Minha família anda
longe.
Mas eu sei
reconhecê-la:
um cílio dentro do
oceano,
um pulso sobre uma
estrela,
uma ruga num caminho
caída como pulseira,
um joelho em cima da
espuma,
um movimento sozinho
aparecido na poeira…
Mas tudo vai sem
nenhuma
noção de destino
humano,
de humana recordação.
Minha família anda
longe.
Reflete-se em minha vida,
mas não acontece
nada:
por mais que eu
esteja lembrada,
ela se faz de
esquecida:
não há comunicação!
Uns são nuvem,
outros, lesma…
Vejo as asas, sinto
os passos
de meus anjos e
palhaços,
numa ambígua
trajetória
de que sou o espelho
e a história.
Murmuro para mim
mesma:
“É tudo imaginação!”
Mas sei que tudo é
memória…
Em: “Vaga Música” (1942)
Lembranças
(Edward L. Henry:
pintor norte-americano)
Referência:
MEIRELES, Cecília. Memória. In:
__________. Cecília de bolso: uma
antologia poética. Organização e apresentação de Fabrício Carpinejar. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 51-53. (Coleção L&PM Pocket; v. 700)
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário