A relembrar o famoso episódio do Canto IV de “Os Lusíadas”, de Camões –
em que o Velho do Restelo lança maus augúrios aos navegantes que partiam para
as suas longas viagens em direção ao oriente –, Saramago o “ressuscita” para,
desta vez, continuar as suas imprecações contra um hipotético astronauta.
Com tanta fome e miséria a grassar sobre a terra, gastam-se bilhões para
investigar o espaço sideral: tal é a prova de nossa riqueza material e da nossa
pobreza espiritual. Entrementes, mais dinheiro se converte em armamentos
militares pela indústria bélica. E continuamos nessa sandice sem tamanho, tudo
em nome da conquista ou da manutenção do poder!
J.A.R. – H.C.
José Saramago
(1922-2010)
Fala do Velho do Restelo ao astronauta
Aqui, na Terra, a
fome continua,
A miséria, o luto, e
outra vez a fome.
Acendemos cigarros em
fogos de napalme
E dizemos amor sem
saber o que seja.
Mas fizemos de ti a
prova da riqueza
Ou talvez da pobreza,
e da fome outra vez,
E pusemos em ti nem
eu sei que desejo
De mais alto que nós,
e melhor, e mais puro.
No jornal soletramos,
de olhos tensos,
Maravilhas de espaço
e de vertigem:
Salgados oceanos que
circundam
Ilhas mortas de sede,
onde não chove.
Mas o mundo,
astronauta, é boa mesa
(E as bombas de
napalme são brinquedos),
Onde come, brincando,
só a fome,
Só a fome,
astronauta, só a fome.
O Velho do Restello
(Columbano B.
Pinheiro: pintor português)
Referência:
SARAMAGO, José. Fala do velho do
restelo ao astronauta. In: MENÉRES, Maria Alberta; CASTRO, E. M. de Melo e
(Compiladores). Antologia da poesia portuguesa:
1940-1977. Lisboa: Moraes, 1979. v. 2. p. 377.
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Faz a analise externa pf
ResponderExcluirPrezado(a),
ExcluirVai aqui uma rápida súmula sobre a estrutura externa do poema de Saramago, dedicado a confrontar o estado de miséria e de fome no mundo, aliado à guerra – afinal, há clara referência ao conflito bélico dos EUA contra o Vietnã, onde foram lançados tambores e tambores da substância “napalme” para desfolhar a densa vegetação nativa –, ao irremediável avanço da tecnologia, a permitir as viagens aeroespaciais da série Apolo, em fins da década de 60 e inícios da de 70 do século passado.
Se o velho de Restelo reaparece no cenário das contingências humanas, é para atualizar as suas invectivas, lá de Camões – pelas intenções aventureiras dos lusitanos na arte náutica –, para os tempos contemporâneos, com os norte-americanos na astronáutica.
Eis aqui o que se extrai da estrutura do poema:
(1) Inicialmente, com relação ao número de estrofes, observo que a sua forma, assim como a apresento, é a que consta no livro em referência, com 1 (uma) estrofe contínua de 16 (dezesseis) versos.
(2) Contudo, observo que há postagens na grande rede que apresentam disposições diferentes, a maior parte das quais com um esquema de 4 (quatro) estrofes: a primeira, com 2 (dois) versos (um dístico); a segunda, com 6 (seis) versos (uma sextilha); a terceira, com 4 (quatro) versos (uma quadra ou quarteto); e a quarta, também com 4 (quatro) versos (idem).
(3) Trata-se de uma espécie de soneto estrambótico, extravagante ou irregular, haja vista que contém 2 (dois) versos a mais do que o soneto convencional, com 14 (quatorze) versos, além de ter a sua estrutura invertida, caso se apresente, de fato, com a distribuição assente em (2).
(4) O poema não dispõe de esquema de rimas, sendo composto por versos brancos ou soltos.
(5) Os versos não têm uma quantidade única de sílabas poéticas, sendo por isso mesmo classificados como livres, variando elas entre 8 (oito) sílabas (no último verso – octossílabo) e 13 (treze) (no terceiro verso – bárbaro).
(6) Saramago lança mão de anáforas “impróprias” para ressaltar a presença ostensiva na Terra, como mais acima o sublinhei, da “fome” que resulta da pobreza – a palavra se repete por 6 (seis) vezes no poema – e da guerra – há a alusão ao “napalme” por 2 (duas) vezes, exatamente nos mesmos terceiro e último versos mencionados em (5).
Um abraço,
João A. Rodrigues
Prezado(a),
ExcluirUm adendo: outro ponto de interesse, é a “atualização” da forma das estrofes de Camões em “Os Lusíadas” – oitavas com versos decassílabos heroicos e esquema de rimas “ABABABCC” –, para 2 (duas) oitavas contínuas – se considerada a aparência mencionada em (1), no comentário anterior –, com versos sem rimas e sem métrica, muito ao gosto dos poetas modernistas.
Um abraço,
João A. Rodrigues