Numa imagem textual em que as mulheres, em especial, são despojadas de
sua humanidade, não há como se manifestar alegria ou entusiasmo, pois toda interlocução
somente por meio do sussurro se torna possível de exteriorização.
Era uma vida sem esperanças a que se vivia no degredo, relembra Akhmátova
– que nas prisões de Leningrado (hoje, novamente São Petersburgo) esteve por dezessete
meses –, durante os anos do expurgo instaurado pelo líder da NKDV (Polícia
Secreta Soviética), Nikolai Yezhov.
Ali só se tinha notícias de entes queridos mortos, encarcerados ou
exilados para a Sibéria. Em tributo às mulheres que conheceu durante aqueles
anos de confinamento, a poetisa dedica este poema.
J.A.R. – H.C.
Anna Akhmátova
(1889-1966)
Посвящение
Перед этим горем гнутся горы,
Не течет великая река,
Но крепки тюремные затворы,
А за ними “каторжные норы”
И смертельная тоска.
Для кого-то веет ветер свежий,
Для кого-то нежится закат –
Мы не знаем, мы повсюду те же,
Слышим лишь ключей постылый скрежет
Да шаги тяжелые солдат.
Подымались как к обедне ранней,
По столице одичалой шли,
Там встречались, мертвых бездыханней,
Солнце ниже, и Нева туманней,
А надежда все поет вдали.
Приговор... И сразу слезы хлынут,
Ото всех уже отделена,
Словно с болью жизнь из сердца вынут,
Словно грубо навзничь опрокинут,
Но идет... Шатается... Одна...
Где теперь невольные подруги
Двух моих осатанелых лет?
Что им чудится в сибирской вьюге,
Что мерещится им в лунном круге?
Им я шлю прощальный свой привет.
Paisagem Siberiana
(Vladimir Zhdanov: pintor russo)
Dedicatória
Diante dessa dor, as
montanhas se inclinam
e o grande rio deixa
de correr.
Mas os muros das
prisões são poderosos
e, por trás deles,
estão as “tocas dos condenados”
e a saudade mortal.
É para os outros que
a brisa fresca sopra,
é para os outros que
o pôr do sol se enternece –
mas nada sabemos
disso: somos as que, por toda parte,
só ouvem o odioso
ranger das chaves
e o passo pesado dos
soldados.
Levantávamo-nos como
para o culto da madrugada,
arrastávamo-nos por
esta capital selvagem,
para nos encontrarmos
lá, mais inertes do que os mortos,
o sol cada vez mais
baixo, o Nevá mais nevoento,
enquanto a esperança
cantava bem ao longe…
O veredicto… e as
lágrimas de súbito brotam.
E ei-la separada do
mundo inteiro
como se de seu
coração a vida se arrancasse,
como se com um soco a
derrubassem.
E, no entanto, ela
ainda anda… cambaleando… sozinha…
Onde estão, agora, as
companheiras de infortúnio
desses meus dois anos
de terror?
O que estarão vendo,
agora, na neblina siberiana?
A elas eu mando a
minha última saudação.
Março de 1940
Referências:
Em Russo
Em Português
AKHMÁTOVA, Anna. Dedicatória. Tradução
de Lauro Machado Coelho. In: __________. Anna
Akhmátova: seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho.
Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 90. (L&PM Pocket; v. 751)
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