Temos aqui um poema que se propõe a descrever as circunstâncias e as
conjunções sob as quais se passam as vidas de uma classe especial de seres
humanos – os poetas –, eles que constituem dispersa constelação que caminha no
mundo a lançar estrelas!
Estranhamente, em outras antologias que não a apresentada em referência,
o poema detém outro título, nomeadamente, “Os malditos (A aparição do poeta)”,
o que denota melhor certa linha de criação romântica presente em seus versos.
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
O poeta
Quantos somos, não
sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro; cinco, talvez nada
Talvez a
multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze Terras
Quantos, não sei...
Só sei que somos muitos – o desespero da dízima infinita
E que somos belos
deuses mas somos trágicos.
Viemos de longe...
Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido como espectros
Da boca ardente dos
vulcões ou da órbita cega dos lagos desaparecidos
Quem sabe tenhamos
germinado misteriosamente do sono cauterizado das batalhas
Ou do ventre das baleias
quem sabe tenhamos surgido?
Viemos de longe –
trazemos em nós o orgulho do anjo rebelado
Do que criou e fez nascer
o fogo da ilimitada e altíssima misericórdia
Trazemos em nós o
orgulho de sermos úlceras no eterno corpo de Jó
E não púrpura e ouro
no corpo efêmero de Faraó.
Nascemos da fonte e
viemos puros porque herdeiros do sangue
E também disformes
porque – ai dos escravos! não há beleza nas origens
Voávamos – Deus dera
a asa do bem e a asa do mal às nossas formas impalpáveis
Recolhendo a alma das
coisas para o castigo e para a perfeição na vida eterna.
Nascemos da fonte e
dentro das eras vagamos como sementes invisíveis o coração dos mundos e dos
homens
Deixando atrás de nós
o espaço como a memória latente da nossa vida anterior
Porque o espaço é o
tempo morto – e o espaço é a memória do poeta
Como o tempo vivo é a
memória do homem sobre a terra.
Foi muito antes dos
pássaros – apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra
imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No
caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem
Mas de onde viéramos
nós e por que privilégio recebido?
E enquanto o eterno
tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia
criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e
da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a
contemplação e da contemplação a serenidade imperecível.
Nós percorríamos como
estranhas larvas a forma patética dos astros
A tudo assistindo e
tudo ouvindo e tudo guardando eternamente
Como, não sei...
Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo
se fecundando à cálida centelha.
Vivemos o
inconsciente das idades nos braços palpitantes dos ciclones
E as germinações da
carne no dorso descarnado dos luares
Assistimos ao
mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
E a espantosa
encantação dos eclipses e das esfinges.
Descemos longamente o
espelho contemplativo das águas dos rios do Éden
E vimos, entre os
animais, o homem possuir doidamente a fêmea sobre a relva
Seguimos… E quando o
decurião feriu o peito de Deus crucificado
Como borboletas de
sangue brotamos da carne aberta e para o amor celestial voamos.
Quantos somos, não
sei... somos um, talvez dois; três, talvez quatro; cinco, talvez, nada
Talvez a
multiplicação de cinco mil e cujos restos encheriam doze Terras
Quantos, não sei…
Somos a constelação perdida que caminha largando estrelas
Somos a estrela
perdida que caminha desfeita em luz.
Os Poetas
(Georgios Roilos:
pintor grego)
Referência:
MORAES, Vinicius. O poeta. In:
__________. Antologia poética. 14ª
reimpressão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2000. p. 32-35.
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