A memória da infância tem relevo neste belo poema do poeta francês
Bonnefoy, notoriamente perpassado por questões temáticas como a morte, a
sobrevivência e a redenção.
A alusão a uma ponte que interliga as duas margens de águas a serem
transpostas sublinha um estado avançado de consciência do ser: este já não é
estruturado somente pela luz ou somente pela escuridão, senão por uma mescla de
ambas, a revelar matizes de consciência e de inconsciência.
J.A.R. – H.C.
Apreciação da Obra do Autor
(LARANJEIRA, 1996, p.
29-30)
Yves Bonnefoy nasceu em Tours (Indre-et-Loire, França) em 24 de junho de
1923, de pai ferroviário e mãe professora primária. Desde a publicação do seu
primeiro livro de poemas, Du Mouvement et
de l’immobilité de Douve (1953), impôs-se como o autor de uma das obras
poéticas maiores do pós-guerra.
Isso se deve às suas extraordinárias faculdades de intuição e ao
profundo senso poético que preside à sua vida e à sua produção artística e
intelectual, à aguda visão arquitetural e de conjunto, que talvez tenha as suas
raízes nos estudos matemáticos e filosóficos a que se dedicou desde a juventude.
Depois, na universidade de Poitiers, e em seguida na Sorbonne, prosseguirá
cursando matemática, história das ciências e filosofia.
Ainda adolescente, desperta para a poesia lendo Valéry, mas se apegará
particularmente a Baudelaire – sobre o qual fará o mestrado –, Rimbaud e
Mallarmé. Em Paris, descobre os poetas e os pintores surrealistas, chegando a
frequentar o grupo de André Breton. Mantém-se, entretanto, reservado quanto a
cenas práticas surrealistas e rompe com o grupo em 1947. Desde então, a sua
originalidade se afirma definitivamente.
Assim, legou-nos a
gravidade e a clareza misteriosa dos seus poemas, as quais também transparecem
ao longo dos seus ensaias, dedicados, com igual acuidade, à pintura e à poesia,
numa busca, sem trégua nem concessões, do vrai
lieu – esperança, sempre a preceder a palavra –, da unidade a ser reencontrada.
Aceitação do limite, da finitude e da morte que conduz ao encontro, na outra
margem, das coisas simples em que revive a manifestação do ser: a moradia, a
luz, o fogo, a pedra, a folhagem, a neve... o amor.
Embora não se prenda aos formalismos da poética tradicional, a poesia de
Yves Bonnefoy é sempre perpassada por um trabalho muito elaborado sobre a
materialidade do signo: ritmos, sonoridades, espacialização. É ele próprio quem
nos diz em seus Entretiens sur Ia poésie,
“Poeta é quem, numa língua em que há sem dúvida noções inumeráveis, ideias com
pressa de dizer tudo, cria relações, não entre ideias, mas entre palavras, pela
via de uma beleza de escrita que faz intervirem as sonoridades, os ritmos, e
toma a aparência de imagens, irredutíveis à análise”.
Há que se destacar também, como parte integrante da produção poética de
Yves Bonnefoy, as suas traduções de Shakespeare, Yeats. John Donne e outros.
Depois de ensinar em várias universidades, na França e no exterior, Yves
Bonnefoy foi eleito, em 1981, para o Collège de France, onde lecionou poética
até 1993.
Yves Bonnefoy
(n. 1923)
Le pont de fer
Il y a sans doute toujours au bout d’une longue rue
Où je marchais enfant une mare d’huile
Un rectangle de lourde mort sous le ciel noir.
Depuis la poésie
A séparé ses eaux des
autres eaux,
Nulle beauté nulle couleur ne la retiennent,
Elle s’angoisse pour du fer et de la nuit.
Elle nourrit
Un long chagrin de rive morte, un pont de fer
Jeté vers l’autre rive encore plus nocturne
Est sa seule mémoire et son seul vrai amour.
(“Hier régnant désert”, em “Poèmes”)
Ponte de Ferro no Outono
(Helen Lush: pintora
galesa)
A Ponte de Ferro
Existe ainda por
certo ao fim de uma longa rua
Onde andava eu
criança um pântano estagnado
Retângulo pesado de
morte ao céu negro.
Desde então a poesia
Separou de outras
águas suas águas,
Beleza alguma, ou cor
a vão reter,
Por ferro ela
angustiasse e por noite.
Nutre um longo
Pesar de margem morta,
uma ponte de ferro
Lançada à outra
margem mais noturna ainda
É sua só memória e só
real amor.
(“Reinante ontem deserto”, em “Poemas”)
Referência:
BONNEFOY, Yves. Le pont de fer / A
ponte de ferro. In: LARANJEIRA, Mário (Seleção, tradução e introdução). Poetas de França hoje: 1945-1995.
Apresentação de Nelson Ascher. São Paulo, SP: Edusp, 1996. p. 35.
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