Compulsando o clássico livro “Cantos de Maldoror”, do epigrafado poeta
uruguaio que viveu na França, despertou-me a atenção a passagem abaixo: um longo
panegírico às ciências matemáticas, naquilo que elas têm de mais axiomático, nomeadamente,
a lógica e a objetividade.
E o que mais sobressai no texto de Lautréamont é exatamente a mescla das
marcantes características dos ramos da matemática – como a álgebra, a
aritmética e a geometria –, a um imaginoso e onírico discurso, que tem espaço,
inclusive, para fazer menção às cifras cabalísticas subjacentes à ordem do
mundo...
J.A.R. – H.C.
Conde de Lautréamont
(Isidore Lucien Ducasse)
(1846-1870)
Cantos de Maldoror
(Canto Segundo -
Excerto)
Ó matemáticas
severas, não vos esqueci, desde que vossas sábias lições, mais doces que o mel,
infiltraram-se no meu coração, qual onda refrescante. Aspirava instintivamente,
desde o berço, a beber em vossa fonte, mais antiga que o sol, e continuo ainda
a percorrer o piso sagrado de vosso templo solene, eu, o mais fiel de vossos
iniciados. Havia qualquer coisa de vago no meu espírito, um não sei quê espesso
como a fumaça; mas soube transpor religiosamente os degraus que levam a vosso
altar, e afugentastes esse véu escuro, assim como o vento empurra uma tempestade.
Colocastes, em seu lugar, uma excessiva frieza, uma prudência consumada, e uma
lógica implacável. Com a ajuda de vosso leite fortificante, minha inteligência
desenvolveu-se rapidamente, tomando proporções imensas, em meio a essa
claridade encantadora com que presenteais, com prodigalidade, aqueles que vos
amam de um amor sincero. Aritmética! álgebra! geometria! trindade grandiosa!
triângulo luminoso! Quem vos desconhece é um insensato. Mereceria a provação
dos maiores suplícios; pois mostra um desprezo cego em sua ignorante apatia;
mas quem vos conhece e vos aprecia nada quer dos bens terrestres; contenta-se
com vossos prazeres mágicos; e, carregado por vossas asas sombrias, deseja
apenas levantar-se, com um voo ligeiro, construindo uma hélice ascendente, rumo
à borda esférica do céu. A terra só lhe mostra ilusões e fantasmagorias morais;
mas vós, matemáticas concisas, pelos encadeamentos rigorosos de vossas
proposições tenazes e a constância das vossas leis de ferro, fazeis brilhar,
aos olhos deslumbrados, um reflexo poderoso dessa verdade suprema na qual se
percebe a marca de uma ordem do universo. Mas a ordem que vos rodeia,
representada principalmente pela regularidade perfeita do quadrado, o amigo de
Pitágoras, é maior ainda; pois o Todo-Poderoso revelou-se completamente, ele e
seus atributos, no trabalho memorável que consiste em fazer sair das entranhas
do caos vossos tesouros de teoremas e vossos magníficos esplendores. Nas eras
antigas e nos tempos modernos, mais de uma grande imaginação humana viu seu
gênio espantar-se, diante de vossas figuras simbólicas traçadas sobre um papel ardente,
qual outros tantos sinais misteriosos, que vivem de um hálito latente, que não
são compreendidos pela vulgaridade profana, revelação estrepitosa de axiomas e
hieróglifos eternos, que existiram antes do universo e se manterão depois dele.
E ele se interroga, debruçado diante do precipício de um ponto de interrogação
fatal, como é possível que as matemáticas contenham grandezas tão imponentes e
tanta verdade incontestável, enquanto, ao compará-las com o homem, só encontra
neste último o falso orgulho e a mentira. Então, esse espírito superior,
entristecido, ao qual a nobre familiaridade de vossos conselhos faz sentir com
maior intensidade a pequenez da humanidade, e sua incomparável loucura,
mergulha a cabeça embranquecida na mão descarnada e permanece absorvido em
meditações sobrenaturais. Inclina seu joelho à vossa frente, e sua veneração
presta homenagem ao vosso rosto divino, como à própria imagem do Todo-Poderoso.
Na minha infância, aparecestes, uma noite de maio, ao clarão da lua, sobre uma
planície verdejante, às margens de um límpido regato, as três iguais em graça e
pudor, as três cheias de majestade, como rainhas. Traçastes alguns passos na
minha direção, com vosso longo manto, flutuando como um vapor, e me atraístes
para vossos altivos seios, como se eu fosse um filho abençoado. E foi então que
acorri apressadamente, as mãos crispadas sobre vosso alvo pescoço.
Alimentei-me, com reconhecimento, de vosso maná fecundo, e senti que a
humanidade crescia em mim, e se tornava melhor. Desde então, ó deusas rivais,
nunca mais vos abandonei. Desde então, quantos projetos enérgicos, quantas
simpatias, que acreditava gravadas nas páginas de meu coração, como em mármore,
não foram apagando lentamente, do meu raciocínio desenganado, suas linhas
configurativas, como a aurora nascente que apaga a sombra da noite! Desde
então, vi a morte, na intenção, visível a olho nu, de povoar os túmulos,
devastar os campos de batalha, alimentada pelo sangue humano, e fazer crescer
flores matinais no meio das ossadas fúnebres. Desde então, assisti as
revoluções do nosso planeta; os tremores de terra, os vulcões, com sua lava
ardente, o simum dos desertos e os naufrágios da tempestade tiveram minha
presença como espectador impassível. Desde então, vi inumeráveis gerações
humanas levantarem, pela manha, suas asas e seus olhos, em direção ao espaço,
com o prazer inexperiente da crisálida que saúda sua verdadeira metamorfose, e
morrerem ao entardecer, antes do pôr do sol, a cabeça curvada, como flores
fanadas balançadas pelo soprar lamentoso do vento. Vós, porém, permaneceis
sempre as mesmas. Nenhuma mudança, nenhum ar empesteado roça os rochedos
escarpados e os imensos vales de vossa identidade. Vossas pirâmides modestas
durarão muito mais que as pirâmides do Egito, formigueiros levantados pela
estupidez e pela escravidão. O fim dos séculos ainda verá, de pé sobre as
ruínas dos tempos, vossas cifras cabalísticas, vossas equações lacônicas, e
vossas linhas esculturais, repousando à direita vingadora do Todo-Poderoso,
quando as estrelas mergulharem com desespero, como trombas, na eternidade de
uma noite horrível e universal, enquanto a humanidade, contorcendo-se, tentar
prestar contas no Juízo Final. Obrigado, pelos inumeráveis serviços que me
prestastes. Obrigado, pelas estranhas qualidades com que enriquecestes minha
inteligência. Sem vós, na minha luta contra o homem, eu poderia talvez ser
derrotado. Sem vós, poderia ter rolado na sujeira e abraçado a poeira dos pés
deles. Sem vós, com uma pérfida garra, teriam penetrado minha carne e meus
ossos. Mas permaneci em guarda como um atleta experimentado. Vós me destes a
frieza que surge das vossas concepções sublimes, isentas de paixões. Servi-me
dela para recusar com desprezo os prazeres efêmeros de minha curta viagem e
para devolver, da minha porta, as oferendas simpáticas, mas ilusórias, dos meus
semelhantes. Vós me destes a prudência constante que se decifra a cada passo em
vossos métodos admiráveis de análise, síntese e dedução. Servi-me dela para
derrotar as artimanhas perniciosas do meu inimigo mortal, para atacar, por
minha vez, com destreza, e mergulhar, nas vísceras do homem, um punhal agudo
que permanecerá para sempre enfiado no seu corpo. Porque essa é uma ferida da
qual ele não se curará. Vós me destes a lógica, que é como a essência dos vossos
ensinamentos cheios de sabedoria; com seus silogismos, cujo labirinto
complicado me é cada vez mais compreensível, minha inteligência viu duplicarem
suas forças audaciosas. Por meio desse auxiliar terrível, descobri na
humanidade que nada rumo às profundezas, diante dos escolhos do ódio, a maldade
negra e horripilante, que crescia em meio a miasmas deletérios, admirando seu
próprio ventre. Antes de mais nada, descobri, nas trevas de suas entranhas, o
vício nefasto, o mal! superior nele ao bem. Com esta arma envenenada que vós me
concedestes, fiz descer de seu pedestal, construído pela covardia do homem, o
próprio Criador! Rilhava os dentes, enquanto sofria ignominioso insulto; pois
tinha como adversário alguém mais forte do que ele. Porém deixá-lo-ei de lado,
como um pacote de trapos, para abaixar meu voo... O pensador Descartes fazia,
um dia, a reflexão de nada sólido ter sido construído sobre vós. É um modo
engenhoso de lazer com que se entenda que o primeiro recém-chegado jamais
poderia descobrir imediatamente vosso valor inestimável. Com efeito, que pode
haver de mais sólido que as três qualidades principais já nomeadas,
elevando-se, entrelaçadas como uma corda única, sobre o píncaro augusto de
vossa arquitetura colossal? Monumento que cresce sem cessar em quotidianas
descobertas, em vossas minas de diamantes, e explorações científicas, em vossos
soberbos domínios. Ó matemáticas santas, serieis capazes, por vosso perpétuo
comércio, de consolar o restante dos meus dias da maldade do homem e da
injustiça do Grande-Todo!
O Matemático
(Paul Hartal: pintor
e poeta canadense)
Referência:
LAUTRÉAMONT, Conde de. Canto segundo
(excerto). In: __________. Cantos de
Maldoror. Tradução e prefácio de Claudio Willer. São Paulo, SP: Vertente,
1970. p. 74-79.
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Pecado imperdoável estar "infiltraram-se" em vez de "se infiltraram". Ainda bem que li outra tradução onde não tenho que apanhar com coisas dessas
ResponderExcluirPrezado(a),
ResponderExcluirPublico o seu comentário, para que o Claudio Willer tenha o direito de oferecer réplica, se assim o desejar.
João A. Rodrigues