Borges é sempre uma referência: não sem motivo sempre voltamos aos seus
escritos, seus poemas, invariavelmente pejados de erudição e de sabedoria de
vida, num texto com latentes inflexões sobre a virtualidade das experiências
vividas.
O poema que escolhemos como objeto desta postagem – “Una Brújula” (“Uma
Bússola”) – foi objeto de comento por parte do também erudito crítico George
Steiner, nos seguintes termos, suprimidas, por conveniência, as notas de rodapé:
“Labirintos, ruínas circulares,
galerias, Babel (ou Babilônia) são constantes na arte do nosso terceiro
cabalista. Podemos localizar na poesia e na ficção de Borges cada um dos
motivos presentes na mística linguística dos cabalistas e gnósticos: a imagem
do mundo como uma concatenação de sílabas secretas, a noção de um idioma
absoluto ou de uma letra cósmica – alfa
e álefe – que subjaz ao tecido
dilacerado das línguas humanas, a suposição de que a totalidade do conhecimento
e da experiência está prefigurada num último tomo contendo todas as permutações
imagináveis para o alfabeto. Borges leva adiante a crença oculta de que a
estrutura do tempo e do espaço ordinariamente percebidos se entrecruza com
cosmologias alternativas, com realidades consistentes e multiformes nascidas de
nossa fala e das liberadas energias do pensamento. A lógica de suas fábulas se
sustenta numa recusa da causalidade normal. Uma especulação gnóstica e
maniqueísta (a palavra tem em si uma ação de espelhos) dá a Borges o tropo
crucial de um mundo ao contrário. Correntes contrárias de tempo e narração
sopram como altos e silentes ventos através de nosso habitat instável e em si talvez apenas conjectural. Nenhum poeta
imaginou com mais densidade de vida a possibilidade de que nossa existência
esteja sendo ‘sonhada em outro lugar’, de que somos a mera figura de um dizer
alheio, movendo-se ruidosamente em direção ao fechamento daquela enunciação
única imaginavelmente vasta, na qual Jakob Böhme ouvia o som do Logos” (STEINER, 2005, p. 94-95).
P.s.: A tradução do inglês para o português, de um poema que, no
original, foi escrito em espanhol, implicou que, no presente caso, o título se
tornasse “Compasso” na versão para o livro de Steiner, uma transcrição indevida
para “Una Brújula”, tudo porque “Bússola” em inglês se traduz como “Compass”...
J.A.R. – H.C.
Jorge Luis Borges
(1899-1986)
Una Brújula
A Esther Zemboráin de Torres
Todas las cosas son
palabras del
Idioma en que Alguien
o Algo, noche y día,
Escribe esa infinita
algarabía
Que es la historia
del mundo. En su tropel
Pasan Cartago y Roma,
yo, tú, él,
Mi vida que no entiendo,
esta agonía
De ser enigma, azar,
criptografía
Y toda la discordia
de Babel.
Detrás del nombre hay
lo que no se nombra;
Hoy he sentido
gravitar su sombra
En esta aguja azul,
lúcida y leve,
Que hacia el confín
de un mar tiende su empeño,
Con algo de reloj
visto en un sueño
Y algo de ave dormida
que se mueve.
Bússola e Monóculo
(Jaime Haney: artista
norte-americana)
Uma Bússola
A Esther Zemboráin de Torres
Todas as coisas são
palavras do
Idioma em que Alguém
ou Algo, noite e dia,
Escreve essa infinita
algaravia
Que é a história do
mundo. Em seu tropel
Passam Cartago e
Roma, eu, tu, ele,
Minha vida que não
entendo, esta agonia
De ser enigma, azar,
criptografia
E toda a discórdia de
Babel.
Por trás do nome há o
que não se nomeia;
Hoje senti gravitar
sua sombra
Nesta agulha azul,
lúcida e leve,
Que até o confim de
um mar estende seus esforços,
Com algo de relógio
visto em um sonho
E algo de ave dormida
que se move.
Referências:
BORGES, Jorge Luis. Una brújula. In:
__________. Obras completas: El
otro, el mismo. v. II. Buenos Aires, AR: Emecé, 1989. p. 253.
STEINER, George. Depois de Babel: questões de linguagem e tradução. Tradução de
Carlos Alberto Faraco. Curitiba, PR: Editora da UFPR, 2005.
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