Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 23 de março de 2016

Gonçalves Dias - O Vate

Nem só da “Canção do Exílio” vive a poesia de Gonçalves Dias (rs)! Este poema, inserido na obra “Primeiros Cantos”, já revela um poeta preocupado em entender os limites de sua própria arte: “Vate! Vate! que és tu?”, pergunta-se o autor, sobre o papel a desempenhar no cerne da experiência romântica da qual compartilhava.

Dias varre, nas estrofes de seu poema, grande parte da tradição poética ocidental. Tem-se, então, o poeta como “sacerdote e profeta”; a inescapável menção a grandes nomes da história literária, como Homero, Dante e Milton; até alcançar os dias em que vivo estava, quando então sentia-se um errante, mas ainda assim apegado às virtudes teologais, vale dizer, a fé, a esperança e a caridade.

Ainda não se veem indícios da fase indianista pela qual o poeta maranhense ficou famoso. De fato, há certa fluência evocatória em seus versos e, não sem razão, a associação com a epígrafe de Victor Hugo vem muito ao caso!

J.A.R. – H.C.

Antônio Gonçalves Dias
(1823-1864)

O Vate

No Álbum de um Poeta

Moi... j’aimerai ta victoire;
Pour mon coeur, ami de toute gloire,
Les triomphes d’autrui ne sont pas un affront.
Poète, j’eus toujours un chant pour les poètes,
Et jamais le laurier qui pare d’autres têtes
Ne jeta d’ombre sur mon front.
V. Hugo

Vate! Vate! que és tu? – Nos seus extremos
Fadou-te Deus um coração de amores,
Fadou-te uma alma acesa borbulhando
Ardidos pensamentos, como a lava
Que o gigante Vesúvio arroja às nuvens.

Vate! Vate! que és tu? – Foste ao princípio
Sacerdote e profeta;
Eram nos céus teus cantos uma prece,
Na terra um vaticínio.
E ele cantava então: – Jeová me disse,
Majestoso e terrível.

“Vês tu Jerusalém como orgulhosa
Campeã entre as nações, como no Líbano
Um cedro a cuja sombra a hissope cresce?
Breve a minha ira transformada em raios
Sobre ela cairá;
Um fero vencedor dentro em seus muros
Tributária a fará;
E quando escravo seus filhos, sobre pedra
Pedra não ficará.”

E os réprobos de saco se vestiam;
Em pó, em cinza envoltos;
E colando co’a terra os torpes lábios,
E açoitando co’as mãos o peito imbele,
Senhor! Senhor! – clamavam.

E o vate entanto o pálido semblante
Meditabundo sobre as mãos firmava,
Suplicando ao Senhor do interno d’alma.
Foram santos então. – Homero o mundo
Criou segunda vez, – o inferno o Dante, –
Milton o paraíso, – foram grandes!

E hoje!... em nosso exílio erramos tristes,
Mimosa esp’rança ao infeliz legando,
Maldizendo a soberba, o crime, os vícios;
E o infeliz se consola, e o grande treme.
Damos ao infante aqui do pão que temos,
E o manto além ao mísero raquítico;
Somos hoje Cristãos.

O Bardo
(John Martin: pintor inglês)

Elucidário:

Vate: Bardo, poeta. Aquele que vaticina. Estreita relação entre o profeta e o poeta.
Epígrafe em português: Eu amarei a tua vitória, por meu coração, amigo de toda glória. Os triunfos do outro não são uma afronta. Poeta, eu tenho sempre um canto para os poetas, e nunca o louro que enfeita outras cabeças atira sombra sobre a minha testa.
Fadar: predestinar, vaticinar.
Vesúvio: Vulcão da Itália.
Vaticínio: Predição, profecia.
Hissope: Planta medicinal da família das labiadas.
Tributária: Dependente, sujeita a pagar tributos.
Sobre Pedra / Pedra não ficará: Paráfrase de profecias bíblicas do Velho Testamento.
Réprobos: Perversos, malvados.
Torpes: Infames, vis, ignóbeis.
Imbele: Tímido, covarde.
Meditabundo: Reflexivo, pensativo.
Homero: Poeta grego que viveu no século IX AC, provável autor da Odisseia.
Milton: John Milton (1608-1674), poeta inglês, autor de “O Paraíso Perdido”.

Referência:

DIAS, Antônio Gonçalves. O vate. In: __________. Primeiros cantos. Belo Horizonte (MG) / Rio de Janeiro (RJ): Itatiaia, 1998. p. 90-91.

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