Nem só da “Canção
do Exílio” vive a poesia de Gonçalves Dias (rs)! Este poema, inserido na
obra “Primeiros Cantos”, já revela um poeta preocupado em entender os limites
de sua própria arte: “Vate! Vate! que és tu?”, pergunta-se o autor, sobre o
papel a desempenhar no cerne da experiência romântica da qual compartilhava.
Dias varre, nas estrofes de seu poema, grande parte da tradição poética
ocidental. Tem-se, então, o poeta como “sacerdote e profeta”; a inescapável
menção a grandes nomes da história literária, como Homero, Dante e Milton; até alcançar
os dias em que vivo estava, quando então sentia-se um errante, mas ainda assim
apegado às virtudes teologais, vale dizer, a fé, a esperança e a caridade.
Ainda não se veem indícios da fase indianista pela qual o poeta
maranhense ficou famoso. De fato, há certa fluência evocatória em seus versos
e, não sem razão, a associação com a epígrafe de Victor Hugo vem muito ao caso!
J.A.R. – H.C.
Antônio Gonçalves Dias
(1823-1864)
O Vate
No Álbum de um Poeta
Moi... j’aimerai ta victoire;
Pour mon coeur, ami de toute gloire,
Les triomphes d’autrui ne sont pas un
affront.
Poète, j’eus
toujours un chant pour les poètes,
Et jamais le laurier qui pare d’autres
têtes
Ne jeta d’ombre
sur mon front.
V. Hugo
Vate! Vate! que és
tu? – Nos seus extremos
Fadou-te Deus um
coração de amores,
Fadou-te uma alma
acesa borbulhando
Ardidos pensamentos,
como a lava
Que o gigante Vesúvio
arroja às nuvens.
Vate! Vate! que és
tu? – Foste ao princípio
Sacerdote e profeta;
Eram nos céus teus
cantos uma prece,
Na terra um
vaticínio.
E ele cantava então: –
Jeová me disse,
Majestoso e terrível.
“Vês tu Jerusalém como
orgulhosa
Campeã entre as
nações, como no Líbano
Um cedro a cuja
sombra a hissope cresce?
Breve a minha ira
transformada em raios
Sobre ela cairá;
Um fero vencedor
dentro em seus muros
Tributária a fará;
E quando escravo seus
filhos, sobre pedra
Pedra não ficará.”
E os réprobos de saco
se vestiam;
Em pó, em cinza
envoltos;
E colando co’a terra
os torpes lábios,
E açoitando co’as
mãos o peito imbele,
Senhor! Senhor! –
clamavam.
E o vate entanto o
pálido semblante
Meditabundo sobre as
mãos firmava,
Suplicando ao Senhor
do interno d’alma.
Foram santos então. –
Homero o mundo
Criou segunda vez, –
o inferno o Dante, –
Milton o paraíso, –
foram grandes!
E hoje!... em nosso
exílio erramos tristes,
Mimosa esp’rança ao
infeliz legando,
Maldizendo a soberba,
o crime, os vícios;
E o infeliz se
consola, e o grande treme.
Damos ao infante aqui
do pão que temos,
E o manto além ao
mísero raquítico;
Somos hoje Cristãos.
O Bardo
(John Martin: pintor
inglês)
Elucidário:
Vate: Bardo, poeta. Aquele que vaticina.
Estreita relação entre o profeta e o poeta.
Epígrafe em português: Eu amarei a tua
vitória, por meu coração, amigo de toda glória. Os triunfos do outro não são
uma afronta. Poeta, eu tenho sempre um canto para os poetas, e nunca o louro
que enfeita outras cabeças atira sombra sobre a minha testa.
Fadar: predestinar,
vaticinar.
Vesúvio: Vulcão da Itália.
Vaticínio: Predição, profecia.
Hissope: Planta medicinal da
família das labiadas.
Tributária: Dependente, sujeita
a pagar tributos.
Sobre Pedra / Pedra não ficará: Paráfrase de
profecias bíblicas do Velho Testamento.
Réprobos: Perversos, malvados.
Torpes: Infames, vis,
ignóbeis.
Imbele: Tímido, covarde.
Meditabundo: Reflexivo,
pensativo.
Homero: Poeta grego que
viveu no século IX AC, provável autor da Odisseia.
Milton: John Milton
(1608-1674), poeta inglês, autor de “O Paraíso Perdido”.
Referência:
DIAS, Antônio Gonçalves. O vate. In:
__________. Primeiros cantos. Belo
Horizonte (MG) / Rio de Janeiro (RJ): Itatiaia, 1998. p. 90-91.
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