Neste soneto, o espanhol Quevedo evoca imagens que vão além do primeiro
nível de leitura e se expandem em significados bem mais profundos que o
tradicional.
Um amor que se prolonga mesmo depois que o corpo haja se tornado pó. Uma
paixão metafísica capaz de se perpetuar no tempo. Será mesmo que o amor é
imortal e capaz de transcender a morte?
Ao leitor, ofereço a passagem abaixo, de autoria de Octavio Paz, na qual
o mexicano faz percuciente análise do sentido menos óbvio que o soneto de
Quevedo permite-se ocultar:
“De acordo com a doutrina platônica, na hora da morte a alma imortal
abandona o corpo e sobe às esferas superiores ou volta à terra para purgar suas
faltas.O corpo se corrompe e volta a ser matéria amorfa; as almas dos
apaixonados se procuram e se unem. Nisso o cristianismo coincide com o
platonismo, e um exemplo são as almas dos adúlteros Paolo e Francesca que giram
juntos no segundo círculo do Inferno. Contudo, há uma diferença substancial: ao
contrário da doutrina platônica, o cristianismo salva o corpo que, depois do Juízo
Final, ressuscita e vive a eternidade da glória ou a do Inferno.
Quevedo rompe com essa tradição e diz
algo que não é nem platônico nem cristão, algo que nossa crítica não estudou nem
meditou. A alma do amante abandona sua forma corporal mas, diz Quevedo, “no su
cuidado”, sua paixão. Movida por esse desejo que faz arder seu sangue e até a
medula de seus ossos, volta e arde misturada com as cinzas de seu corpo.
Ninguém, que eu saiba, deteve-se nesta menção explícita do ritual pagão da
incineração, reprovado pela Igreja. E mais: umas linhas depois, Quevedo diz que
esses despojos continuarão vivendo e amando: ‘Serán ceniza mas tendrán sentido...’ (‘Serão cinzas mas terão sentido...’). Blasfêmia enorme, desafio total à dupla
tradição cristã e platônica. Como este soneto passou pela Inquisição? Não
sei... Estranha, trágica transgressão: o corpo deixará de ser um corpo vivo,
será matéria vil, cinza e pó; ainda assim, continuará amando. A diferença entre
alma e corpo se desvanece: tudo volta a ser pó mas pó animado, desejoso” (PAZ, 1994,
p. 61-62).
J.A.R. – H.C.
Francisco de Quevedo
(1580-1645)
Amor constante más allá de la muerte
Cerrar podrá mis ojos
la postrera
sombra que me llevare
el blanco día,
y podrá desatar esta
alma mía
hora a su afán
ansioso lisonjera;
mas no, de esotra
parte, en la ribera,
dejará la memoria, en
donde ardía:
nadar sabe mi llama
la agua fría,
y perder el respeto a
ley severa.
Alma a quien todo un
dios prisión ha sido,
venas que humor a tanto
fuego han dado,
medulas que han
gloriosamente ardido
su cuerpo dejará, no
su cuidado;
serán ceniza, mas
tendrá sentido;
polvo serán, mas
polvo enamorado.
Amor Moldado Além da Carne
(Zdzislaw Beksinski: artista
polonês)
Love constant beyond death
The final shadow that will close my eyes
will in its darkness take me from white day
and instantly untie the soul from lies
and flattery of death, and find its way
and yet my soul won’t leave its memory
of love there on the shore where it has burned:
my flame can swim cold water and has learned
to lose respect for laws’ severity.
My soul, whom a God made his prison of,
my veins, which a liquid humour fed to fire,
my marrows, which have gloriously flamed,
will leave their body, never their desire;
they will be ash but ash in feeling framed;
they will be dust but will be dust in love.
A Melancolia do Amor
(Constant Mayer:
pintora francesa)
Amor constante para além da morte
Pode fechar-me os
olhos a derradeira
sombra que de mim
leva o branco dia,
e livrar de tudo o
que prendia
a alma ansiosa, a
hora que se abeira;
mas não deixará na
margem da ribeira
a memória dos sítios
onde ardia:
minha chama nada na
água fria
e a dura lei enfrenta
altaneira.
Alma de que todo um
deus foi prisão,
veias onde tanto fogo
foi gerado,
medulas em gloriosa
combustão:
o corpo deixará, não
seu cuidado;
cinzas hão-de ser,
mas com coração;
serão pó, sim, mas pó
apaixonado.
Referências:
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladyr Dupont. São Paulo, SP: Siciliano,
1994.
Versões do Soneto de Quevedo:
Em Espanhol (Original)
QUEVEDO, Francisco de. Amor constante
más allá de la morte. In: __________. Antología
poética. 4. ed. Madrid., ES: Espasa-Calpe, 1959. p. 23-24. (Colección
Austral, nº 362)
Em Inglês
QUEVEDO, Francisco de. Love constant
beyond death. Translation into English by Willis Barnstone. In: PINSKY,
Robert; DIETZ, Maggie (Coords.). American’s
favorite poems: the favorite poem project anthology. New York, NY: W. W.
Norton, 2000. p. 225.
Em Português
QUEVEDO, Francisco de. Amor constante
para além da morte. Tradução de António Simões. Disponível neste
endereço. Acesso em: 26 fev. 2016.
❁
gostei da tradução
ResponderExcluirlegal
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