Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 19 de março de 2016

Francisco de Quevedo - Amor constante para além da morte

Neste soneto, o espanhol Quevedo evoca imagens que vão além do primeiro nível de leitura e se expandem em significados bem mais profundos que o tradicional.

Um amor que se prolonga mesmo depois que o corpo haja se tornado pó. Uma paixão metafísica capaz de se perpetuar no tempo. Será mesmo que o amor é imortal e capaz de transcender a morte?

Ao leitor, ofereço a passagem abaixo, de autoria de Octavio Paz, na qual o mexicano faz percuciente análise do sentido menos óbvio que o soneto de Quevedo permite-se ocultar:

“De acordo com a doutrina platônica, na hora da morte a alma imortal abandona o corpo e sobe às esferas superiores ou volta à terra para purgar suas faltas.O corpo se corrompe e volta a ser matéria amorfa; as almas dos apaixonados se procuram e se unem. Nisso o cristianismo coincide com o platonismo, e um exemplo são as almas dos adúlteros Paolo e Francesca que giram juntos no segundo círculo do Inferno. Contudo, há uma diferença substancial: ao contrário da doutrina platônica, o cristianismo salva o corpo que, depois do Juízo Final, ressuscita e vive a eternidade da glória ou a do Inferno.
Quevedo rompe com essa tradição e diz algo que não é nem platônico nem cristão, algo que nossa crítica não estudou nem meditou. A alma do amante abandona sua forma corporal mas, diz Quevedo, “no su cuidado”, sua paixão. Movida por esse desejo que faz arder seu sangue e até a medula de seus ossos, volta e arde misturada com as cinzas de seu corpo. Ninguém, que eu saiba, deteve-se nesta menção explícita do ritual pagão da incineração, reprovado pela Igreja. E mais: umas linhas depois, Quevedo diz que esses despojos continuarão vivendo e amando: Serán ceniza mas tendrán sentido... (Serão cinzas mas terão sentido...). Blasfêmia enorme, desafio total à dupla tradição cristã e platônica. Como este soneto passou pela Inquisição? Não sei... Estranha, trágica transgressão: o corpo deixará de ser um corpo vivo, será matéria vil, cinza e pó; ainda assim, continuará amando. A diferença entre alma e corpo se desvanece: tudo volta a ser pó mas pó animado, desejoso” (PAZ, 1994, p. 61-62).

J.A.R. – H.C.

Francisco de Quevedo
(1580-1645)

Amor constante más allá de la muerte

Cerrar podrá mis ojos la postrera
sombra que me llevare el blanco día,
y podrá desatar esta alma mía
hora a su afán ansioso lisonjera;

mas no, de esotra parte, en la ribera,
dejará la memoria, en donde ardía:
nadar sabe mi llama la agua fría,
y perder el respeto a ley severa.

Alma a quien todo un dios prisión ha sido,
venas que humor a tanto fuego han dado,
medulas que han gloriosamente ardido

su cuerpo dejará, no su cuidado;
serán ceniza, mas tendrá sentido;
polvo serán, mas polvo enamorado.

Amor Moldado Além da Carne
(Zdzislaw Beksinski: artista polonês)

Love constant beyond death

The final shadow that will close my eyes
will in its darkness take me from white day
and instantly untie the soul from lies
and flattery of death, and find its way

and yet my soul won’t leave its memory
of love there on the shore where it has burned:
my flame can swim cold water and has learned
to lose respect for laws’ severity.

My soul, whom a God made his prison of,
my veins, which a liquid humour fed to fire,
my marrows, which have gloriously flamed,

will leave their body, never their desire;
they will be ash but ash in feeling framed;
they will be dust but will be dust in love.

A Melancolia do Amor
(Constant Mayer: pintora francesa)

Amor constante para além da morte

Pode fechar-me os olhos a derradeira
sombra que de mim leva o branco dia,
e livrar de tudo o que prendia
a alma ansiosa, a hora que se abeira;

mas não deixará na margem da ribeira
a memória dos sítios onde ardia:
minha chama nada na água fria
e a dura lei enfrenta altaneira.

Alma de que todo um deus foi prisão,
veias onde tanto fogo foi gerado,
medulas em gloriosa combustão:

o corpo deixará, não seu cuidado;
cinzas hão-de ser, mas com coração;
serão pó, sim, mas pó apaixonado.

Referências:

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladyr Dupont. São Paulo, SP: Siciliano, 1994.

Versões do Soneto de Quevedo:

Em Espanhol (Original)
QUEVEDO, Francisco de. Amor constante más allá de la morte. In: __________. Antología poética. 4. ed. Madrid., ES: Espasa-Calpe, 1959. p. 23-24. (Colección Austral, nº 362)

Em Inglês
QUEVEDO, Francisco de. Love constant beyond death. Translation into English by Willis Barnstone. In: PINSKY, Robert; DIETZ, Maggie (Coords.). American’s favorite poems: the favorite poem project anthology. New York, NY: W. W. Norton, 2000. p. 225.

Em Português
QUEVEDO, Francisco de. Amor constante para além da morte. Tradução de António Simões. Disponível neste endereço. Acesso em: 26 fev. 2016.

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