Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Erich Fromm - Do Amor à Vida (Excertos)

Autor de inúmeros livros sobre psicanálise e a vida contemporânea, sempre com uma visão humanista espicaçada ao limite, Erich Fromm captura o leitor com a simplicidade e clareza de sua linguagem.

Para prová-lo, extraímos alguns interessantes excertos de sua obra “Do Amor à Vida”, de fato, um conjunto de palestras compiladas segundo oito temas, organizadas por Hans Jürgen Schultz, quando Fromm já contava com quase oitenta anos, ou seja, na derradeira década de sua vida.

J.A.R. – H.C.

Erich Fromm
(1900-1980)

Uma pessoa deprimida ente como que um vazio em suas entranhas, sente como se estivesse paralisada, como se lhe faltasse o que é preciso para agir, como se não pudesse mover-se adequadamente por falta de algo que poderia pô-la em movimento. Se consome alguma coisa, a sensação de vazio, paralisia e debilidade pode abandoná-la temporariamente e, nesse meio tempo, será capaz de sentir: afinal de contas, sou alguém; tenho algo dentro de mim; não sou uma coisa vazia. Enche-se de coisas para expulsar seu vazio interior. É uma personalidade passiva que pressente ser pouca coisa e reprime essas suspeitas consumindo, tornando-se Homo consumens. (FROMM, 1986, p. 15-16)

O tédio é uma das piores formas de tortura. É um fenômeno muito moderno e está se propagando rapidamente. Uma pessoa que está à mercê do seu tédio e incapaz de defender-se contra ele se sentirá gravemente deprimida. O ouvinte talvez se veja tentado, neste ponto, a perguntar por que a maioria das pessoas não se dá conta de como o tédio é uma doença grave e de quanto sofrimento ele pode causar. Penso que a resposta é muito simples. Produzimos hoje tantas coisas que as pessoas podem tomar para ajudá-las a enfrentar o tédio; podemos temporariamente varrer o nosso tédio para debaixo do tapete tomando um tranquilizante, ou bebendo, ou indo a um coquetel após outro, ou brigando com nossas mulheres, ou recorrendo aos meios de comunicação de massa em busca de diversão, ou devotando-nos à atividade sexual. Muitas das coisas que fazemos constituem apenas uma tentativa para impedir que reconheçamos plenamente o nosso tédio. (FROMM, 1986, p. 23)

O que é que distingue o homem dos animais? Não é a sua postura ereta. Ela já estava presente nos grandes símios muito antes do cérebro começar a desenvolver-se.  Tampouco é o uso de ferramentas. É algo inteiramente novo, uma qualidade previamente desconhecida: a consciência de si mesmo. Os animais também possuem consciência. Eles têm uma percepção consciente de objetos, sabem que isto é uma coisa e aquilo uma outra coisa. Mas quando o ser humano nasceu como tal, possuía uma nova e diferente consciência, uma consciência de si mesmo; sabia que existia e que era algo diferente, algo independente da natureza, independente também das outras pessoas. Tinha uma experiência e uma vivência do seu próprio eu. Estava consciente do que pensava e sentia. Até onde nos é dado saber, nada existe de análogo a isso em qualquer outra parte do reino animal. Essa é a qualidade específica que torna humanos os seres humanos. (FROMM, 1986, p. 26)

Mas apesar de tudo isso, subsiste o fato de que a moralidade cristã e judaica é incompatível com a moralidade do sucesso, da impiedade, da desumanidade, do egoísmo, do não dar nem compartilhar. Como esse ponto será óbvio a quantos reflitam sobre isso, não preciso demorar-me nele. De qualquer modo, esse duplo padrão em nossa moralidade tem sido descrito e criticado com frequência. Resumindo, pois, a “ética” que domina no capitalismo moderno amputou a outra perna da religião. A religião deixou de funcionar como promulgadora de valores, visto que as pessoas tampouco já acreditam nela nesse papel. Deus abdicou como criador do mundo e como porta-voz de valores tais como “ama o teu próximo” e “vence a cobiça”. Mas, por outro lado, a sociedade tampouco parece disposta ou capaz de dispensar inteiramente a religião. Nem só de pão vive o homem. Ele tem que possuir uma visão, uma fé, que desperte o seu interesse e o eleve acima da mera existência animal. Um regresso ao antigo paganismo e culto de ídolos não exerce qualquer atração sobre o homem moderno, mas penso poder dizer que o nosso século está desenvolvendo uma nova religião, a que eu chamaria a “religião da tecnologia”. (FROMM, 1986, p. 36-37)

Deparamo-nos aqui com uma questão ainda mais básica: qual é a finalidade do nosso trabalho? É aumentar a produção e o consumo? Ou promover o desenvolvimento e crescimento dos seres humanos? É usualmente afirmado que uma coisa não pode ser separada da outra. O que é bom para a indústria é bom para as pessoas e vice-versa. Isso soa como a proclamação de uma harmonia deliciosa, predeterminada, mas é, de fato, uma deslavada mentira. É fácil demonstrar que muitas coisas que são benéficas para a indústria são ruins para as pessoas. E esse é hoje o nosso dilema. Se continuarmos nó caminho em que estamos, o progresso só será realizado às custas de seres humanos. E, assim, temos de fazer uma escolha. Numa linguagem bíblica, temos de escolher entre Deus e Cesar. Isso pode soar muito dramático, mas se quisermos falar seriamente sobre a vida então as coisas ficam dramáticas, de fato. O que tenho em mente é não só a questão de vida e morte mas também se optamos pelo aumento de morte na vida que vemos à nossa volta ou se optamos por vidas de vitalidade e atividade. A finalidade precípua da vida é tornar-se cada vez mais vital, mais repleta de vida. As pessoas iludem-se a esse respeito. Vivem como se tivessem deixado de viver ou como se nunca tivessem começado a viver. (FROMM, 1986, p. 43-44)

Em última análise, podemos dizer que uma pessoa que não encontra alegria na vida tentará vingar-se e preferirá destruir a vida a sentir que não consegue encontrar qualquer sentido em sua vida. Pode estar ainda viva fisiologicamente mas psicologicamente está morta. É isso que dá origem ao desejo ativo de destruir e à necessidade apaixonada de destruir tudo, incluindo a própria pessoa, em vez de confessar que nasceu mas não logrou se tornar um ser humano vivo. Isso é um sentimento amargo para quem o experimenta e não nos entregamos a mera especulação se admitirmos que o desejo de destruir decorre desse sentimento como uma reação quase inevitável. (FROMM, 1986, p. 112-113)

Algumas pessoas afirmam que princípios como igualdade e justiça são ideologias que se desenvolveram no curso da história e não fazem parte do equipamento básico, natural, do homem. Não posso dedicar-me aqui a uma refutação desse argumento mas quero enfatizar um ponto que fala contra ele: o modo como as pessoas reagem se um grupo hostil viola os princípios de justiça e igualdade demonstra que as pessoas tem, no mais profundo de seu íntimo, um forte sentido desses valores. A sensibilidade da consciência humana em nenhuma parte é mais evidente do que no modo como a maioria das pessoas reage até as mais pequenas violações da justiça e da igualdade, desde que, é claro, não sejam elas próprias as acusadas de cometer tais violações: E assim é que a consciência encontra veemente expressão nas acusações que grupos nacionais fazem contra seus inimigos. Se as pessoas não possuíssem sensibilidade moral natural, como seria possível incitá-las a tão violentas paixões informando-as sobre as atrocidades que se alega terem sido cometidas por seus inimigos? (FROMM, 1986, p. 140)

O Homem e a Mulher
(Jenö Gábor: pintor húngaro)

Referência:

FROMM, Erich. Do amor à vida: palestras radiofônicas organizadas por Hans Jürgen Schultz. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1986.

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