Autor de inúmeros livros sobre psicanálise e a vida contemporânea,
sempre com uma visão humanista espicaçada ao limite, Erich Fromm captura o
leitor com a simplicidade e clareza de sua linguagem.
Para prová-lo, extraímos alguns interessantes excertos de sua obra “Do Amor à
Vida”, de fato, um conjunto de palestras compiladas segundo oito temas, organizadas
por Hans Jürgen Schultz, quando Fromm já contava com quase oitenta anos, ou
seja, na derradeira década de sua vida.
J.A.R. – H.C.
Erich Fromm
(1900-1980)
Uma pessoa deprimida
ente como que um vazio em suas entranhas, sente como se estivesse paralisada,
como se lhe faltasse o que é preciso para agir, como se não pudesse mover-se
adequadamente por falta de algo que poderia pô-la em movimento. Se consome
alguma coisa, a sensação de vazio, paralisia e debilidade pode abandoná-la
temporariamente e, nesse meio tempo, será capaz de sentir: afinal de contas, sou
alguém; tenho algo dentro de mim; não sou uma coisa vazia. Enche-se de coisas
para expulsar seu vazio interior. É uma personalidade passiva que pressente ser pouca coisa e reprime essas suspeitas
consumindo, tornando-se Homo consumens.
(FROMM, 1986, p. 15-16)
O tédio é uma das
piores formas de tortura. É um fenômeno muito moderno e está se propagando
rapidamente. Uma pessoa que está à mercê do seu tédio e incapaz de defender-se
contra ele se sentirá gravemente deprimida. O ouvinte talvez se veja tentado, neste
ponto, a perguntar por que a maioria das pessoas não se dá conta de como o
tédio é uma doença grave e de quanto sofrimento ele pode causar. Penso que a
resposta é muito simples. Produzimos hoje tantas coisas que as pessoas podem
tomar para ajudá-las a enfrentar o tédio; podemos temporariamente varrer o
nosso tédio para debaixo do tapete tomando um tranquilizante, ou bebendo, ou
indo a um coquetel após outro, ou brigando com nossas mulheres, ou recorrendo
aos meios de comunicação de massa em busca de diversão, ou devotando-nos à
atividade sexual. Muitas das coisas que fazemos constituem apenas uma tentativa
para impedir que reconheçamos plenamente o nosso tédio. (FROMM, 1986, p. 23)
O que é que distingue
o homem dos animais? Não é a sua postura ereta. Ela já estava presente nos
grandes símios muito antes do cérebro começar a desenvolver-se. Tampouco é o uso de ferramentas. É algo
inteiramente novo, uma qualidade previamente desconhecida: a consciência de si
mesmo. Os animais também possuem consciência. Eles têm uma percepção consciente
de objetos, sabem que isto é uma coisa e aquilo uma outra coisa. Mas quando o
ser humano nasceu como tal, possuía uma nova e diferente consciência, uma
consciência de si mesmo; sabia que existia e que era algo diferente, algo
independente da natureza, independente também das outras pessoas. Tinha uma
experiência e uma vivência do seu próprio eu. Estava consciente do que pensava
e sentia. Até onde nos é dado saber, nada existe de análogo a isso em qualquer
outra parte do reino animal. Essa é a qualidade específica que torna humanos os
seres humanos. (FROMM, 1986, p. 26)
Mas apesar de tudo
isso, subsiste o fato de que a moralidade cristã e judaica é incompatível com a
moralidade do sucesso, da impiedade, da desumanidade, do egoísmo, do não dar
nem compartilhar. Como esse ponto será óbvio a quantos reflitam sobre isso, não
preciso demorar-me nele. De qualquer modo, esse duplo padrão em nossa
moralidade tem sido descrito e criticado com frequência. Resumindo, pois, a
“ética” que domina no capitalismo moderno amputou a outra perna da religião. A
religião deixou de funcionar como promulgadora de valores, visto que as pessoas
tampouco já acreditam nela nesse papel. Deus abdicou como criador do mundo e
como porta-voz de valores tais como “ama o teu próximo” e “vence a cobiça”.
Mas, por outro lado, a sociedade tampouco parece disposta ou capaz de dispensar
inteiramente a religião. Nem só de pão vive o homem. Ele tem que possuir uma
visão, uma fé, que desperte o seu interesse e o eleve acima da mera existência
animal. Um regresso ao antigo paganismo e culto de ídolos não exerce qualquer
atração sobre o homem moderno, mas penso poder dizer que o nosso século está
desenvolvendo uma nova religião, a que eu chamaria a “religião da tecnologia”. (FROMM,
1986, p. 36-37)
Deparamo-nos aqui com
uma questão ainda mais básica: qual é a finalidade do nosso trabalho? É
aumentar a produção e o consumo? Ou promover o desenvolvimento e crescimento
dos seres humanos? É usualmente afirmado que uma coisa não pode ser separada da
outra. O que é bom para a indústria é bom para as pessoas e vice-versa. Isso
soa como a proclamação de uma harmonia deliciosa, predeterminada, mas é, de
fato, uma deslavada mentira. É fácil demonstrar que muitas coisas que são benéficas
para a indústria são ruins para as pessoas. E esse é hoje o nosso dilema. Se
continuarmos nó caminho em que estamos, o progresso só será realizado às custas
de seres humanos. E, assim, temos de fazer uma escolha. Numa linguagem bíblica,
temos de escolher entre Deus e Cesar. Isso pode soar muito dramático, mas se
quisermos falar seriamente sobre a vida então as coisas ficam dramáticas, de
fato. O que tenho em mente é não só a questão de vida e morte mas também se
optamos pelo aumento de morte na vida que vemos à nossa volta ou se optamos por
vidas de vitalidade e atividade. A finalidade precípua da vida é tornar-se cada
vez mais vital, mais repleta de vida. As pessoas iludem-se a esse respeito.
Vivem como se tivessem deixado de viver ou como se nunca tivessem começado a
viver. (FROMM, 1986, p. 43-44)
Em última análise,
podemos dizer que uma pessoa que não encontra alegria na vida tentará vingar-se
e preferirá destruir a vida a sentir que não consegue encontrar qualquer
sentido em sua vida. Pode estar ainda viva fisiologicamente mas
psicologicamente está morta. É isso que dá origem ao desejo ativo de destruir e
à necessidade apaixonada de destruir tudo, incluindo a própria pessoa, em vez
de confessar que nasceu mas não logrou se tornar um ser humano vivo. Isso é um
sentimento amargo para quem o experimenta e não nos entregamos a mera
especulação se admitirmos que o desejo de destruir decorre desse sentimento como
uma reação quase inevitável. (FROMM, 1986, p. 112-113)
Algumas pessoas
afirmam que princípios como igualdade e justiça são ideologias que se
desenvolveram no curso da história e não fazem parte do equipamento básico,
natural, do homem. Não posso dedicar-me aqui a uma refutação desse argumento
mas quero enfatizar um ponto que fala contra ele: o modo como as pessoas reagem
se um grupo hostil viola os princípios de justiça e igualdade demonstra que as
pessoas tem, no mais profundo de seu íntimo, um forte sentido desses valores. A
sensibilidade da consciência humana em nenhuma parte é mais evidente do que no
modo como a maioria das pessoas reage até as mais pequenas violações da justiça
e da igualdade, desde que, é claro, não sejam elas próprias as acusadas de
cometer tais violações: E assim é que a consciência encontra veemente expressão
nas acusações que grupos nacionais fazem contra seus inimigos. Se as pessoas
não possuíssem sensibilidade moral natural, como seria possível incitá-las a
tão violentas paixões informando-as sobre as atrocidades que se alega terem
sido cometidas por seus inimigos? (FROMM, 1986, p. 140)
O Homem e a Mulher
(Jenö Gábor: pintor húngaro)
Referência:
FROMM, Erich. Do amor à vida: palestras radiofônicas organizadas por Hans Jürgen
Schultz. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 1986.
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