Eis aqui um Drummond
muito distinto ao que, amiúde, costumamos apreciar em suas criações – livre,
desamarrado em relação a métricas ou rimas –, haja vista que nas dez quadras
deste poema percebem-se tanto a métrica regular dos versos decassílabos, quanto
a constância bem demarcada do esquema de rimas em ‘abab’.
Sobre o tema da ‘Cantiga’,
trata-se de uma crônica dedicada ao mês de janeiro – como o de agora em curso –,
notoriamente fincada no cotidiano carioca, pois que se mencionam as marcas das
oferendas a Iemanjá – deixadas nas areias e águas das praias pelos seus
adeptos, nas festas de virada de ano –, alguns de seus bairros – como
Laranjeiras e Ipanema –, e tudo o mais passível de acolhida na face de ‘Janus’
voltada para a frente.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Cantiga
Claro janeiro antigo
e sempre novo,
segue a esperança,
fluida, no teu rumo.
Por que, entre as
alvíssaras do povo,
aumentar-nos o
imposto de consumo?
As rosas de Iemanjá,
na praia cheia,
no mar ignoto,
enquanto a noite gira,
são preces amorosas
sobre a areia,
meiga verdade, feita
de mentira.
Não desencantes tanto
encantamento
a florir no céu
mágico e nas almas.
Aqui te deixo meu
requerimento:
dá-nos manhãs azuis e
tardes calmas.
Dá-nos, janeiro, paz
(não muita, ou morta,
que o coração exige
certo fogo):
faze que esteja
aberta a grande porta
ao que for belo e
bom, eis nosso rogo.
Para os dois
garotinhos inda à espera
que a justiça abra os
olhos, meu janeiro,
dá-lhes as mães
exatas, primavera
a se multiplicar pelo
ano inteiro.
Aos dez mais e
às dez mais... que lhes darias
se eles têm tudo? ou
falta-lhes paciência
para aumentar a
sucessão dos dias
ocos, por sob a
frívola aparência?
Aos milhões menos,
nada lhes prometas
que não queiras
cumprir: janeiro, é sábio
acabar de uma vez com
velhas tretas
e, à falta de canção,
cerrar o lábio.
Mas não quero
cerrá-lo sem que peça
nove dias de sol para
um de chuva,
um compromisso idoso
ao Dr. Lessa,
menos mosquito, e
mais laranja e uva.
Não aumentes,
janeiro, o meu cinema,
leva contigo o tal
cinemascópio,
mas deixa em
Laranjeiras e Ipanema
a barateza alegre
deste ópio.
E finalmente, amigo,
sê cordato,
superlegal e,
sobretudo, ordeiro:
batendo o 31, passa o
mandato
ao nosso caro mês de
fevereiro.
01-01-1956
Virada para o Ano Novo
(Christy Powers:
pintora norte-americana)
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond de. Cantiga. In: __________. Versiprosa: crônica da vida
cotidiana e de algumas miragens. Posfácio de Leandro Sarmatz. 1. ed. São Paulo,
SP: Companhia das Letras, 2017. p. 27-28.
Nenhum comentário:
Postar um comentário