Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Carlos Drummond de Andrade - Cantiga

Eis aqui um Drummond muito distinto ao que, amiúde, costumamos apreciar em suas criações – livre, desamarrado em relação a métricas ou rimas –, haja vista que nas dez quadras deste poema percebem-se tanto a métrica regular dos versos decassílabos, quanto a constância bem demarcada do esquema de rimas em ‘abab’.

 

Sobre o tema da ‘Cantiga’, trata-se de uma crônica dedicada ao mês de janeiro – como o de agora em curso –, notoriamente fincada no cotidiano carioca, pois que se mencionam as marcas das oferendas a Iemanjá – deixadas nas areias e águas das praias pelos seus adeptos, nas festas de virada de ano –, alguns de seus bairros – como Laranjeiras e Ipanema –, e tudo o mais passível de acolhida na face de ‘Janus’ voltada para a frente.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Cantiga

 

Claro janeiro antigo e sempre novo,

segue a esperança, fluida, no teu rumo.

Por que, entre as alvíssaras do povo,

aumentar-nos o imposto de consumo?

 

As rosas de Iemanjá, na praia cheia,

no mar ignoto, enquanto a noite gira,

são preces amorosas sobre a areia,

meiga verdade, feita de mentira.

 

Não desencantes tanto encantamento

a florir no céu mágico e nas almas.

Aqui te deixo meu requerimento:

dá-nos manhãs azuis e tardes calmas.

 

Dá-nos, janeiro, paz (não muita, ou morta,

que o coração exige certo fogo):

faze que esteja aberta a grande porta

ao que for belo e bom, eis nosso rogo.

 

Para os dois garotinhos inda à espera

que a justiça abra os olhos, meu janeiro,

dá-lhes as mães exatas, primavera

a se multiplicar pelo ano inteiro.

 

Aos dez mais e às dez mais... que lhes darias

se eles têm tudo? ou falta-lhes paciência

para aumentar a sucessão dos dias

ocos, por sob a frívola aparência?

 

Aos milhões menos, nada lhes prometas

que não queiras cumprir: janeiro, é sábio

acabar de uma vez com velhas tretas

e, à falta de canção, cerrar o lábio.

 

Mas não quero cerrá-lo sem que peça

nove dias de sol para um de chuva,

um compromisso idoso ao Dr. Lessa,

menos mosquito, e mais laranja e uva.

 

Não aumentes, janeiro, o meu cinema,

leva contigo o tal cinemascópio,

mas deixa em Laranjeiras e Ipanema

a barateza alegre deste ópio.

 

E finalmente, amigo, sê cordato,

superlegal e, sobretudo, ordeiro:

batendo o 31, passa o mandato

ao nosso caro mês de fevereiro.

 

01-01-1956

 

Virada para o Ano Novo

(Christy Powers: pintora norte-americana)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Cantiga. In: __________. Versiprosa: crônica da vida cotidiana e de algumas miragens. Posfácio de Leandro Sarmatz. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. p. 27-28.


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