Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 29 de março de 2017

Murilo Mendes - Poema Dialético

A mesclar certos elementos do imaginário católico com abstrações concernentes ao binômio espaço x tempo, Mendes eleva a sua poesia a um plano espiritual, metafísico, diligenciando no sentido de assim torná-la suficientemente sugestiva ao seu público leitor.

Busca ele tornar o fenômeno cotidiano, constante, permanente, eterno e universal, neste caso, porque entende que o germe da poesia existe em todo homem. Nele mesmo esse germe se converteu em livros sem conta, como se quisesse fazer as palavras transporem os limites do tempo e da eternidade...

J.A.R. – H.C.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Poema Dialético

1

Todas as coisas ainda se encontram em esboço,
Tudo vive em transformação:
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga:
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

2

Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade do mundo.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em planos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

3

A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Senão um desespero sem nobreza, e a peste da alma.
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror.
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos,
Comeram o pó e beberam o próprio suor.
Não se banharam no regato livre.

Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve assumi-la em carne e espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

4

É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir sempre o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída em tempo à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.

De: “Poesia Liberdade” (1947)

Aurora Boreal
(Michael Creese: pintor norte-americano)

Referência:

MENDES, Murilo. Poema dialético. In: TORRES, Alexandre Pinheiro (Seleção, Introdução e Notas). Antologia da poesia brasileira: os modernistas. v. III. Porto, PT: Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores, 1984. p. 730-731.

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