A mesclar certos elementos do
imaginário católico com abstrações concernentes ao binômio espaço x tempo,
Mendes eleva a sua poesia a um plano espiritual, metafísico, diligenciando no
sentido de assim torná-la suficientemente sugestiva ao seu público leitor.
Busca ele tornar o fenômeno cotidiano,
constante, permanente, eterno e universal, neste caso, porque entende que o
germe da poesia existe em todo homem. Nele mesmo esse germe se converteu em
livros sem conta, como se quisesse fazer as palavras transporem os limites do
tempo e da eternidade...
J.A.R. – H.C.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Poema Dialético
1
Todas as coisas ainda
se encontram em esboço,
Tudo vive em
transformação:
Mas o universo marcha
Para a arquitetura
perfeita.
Retiremos das árvores
profanas
A vasta lira antiga:
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e
ao coração de todos.
Cada novo poeta que
nasce
Acrescenta-lhe uma
corda.
2
Uma vida iniciada há
mil anos atrás
Pode ter seu
complemento e plenitude
Numa outra vida que
floresce agora.
Nada poderá se
interromper
Sem quebrar a unidade
do mundo.
Um germe foi criado
no princípio
Para que se desdobre
em planos múltiplos.
Nossos suspiros,
nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo
do infinito
Pelo espírito
sereníssimo que preside às gerações.
3
A muitos só lhes
resta o inferno.
Que lhes coube na
monstruosa partilha da vida
Senão um desespero
sem nobreza, e a peste da alma.
Nunca ouviram a
música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à
contínua anunciação
E ao contínuo parto
das belas formas.
Nunca puderam ver a
noite chegar sem elementos de terror.
Caminham conduzindo o
castigo e a sombra de seus atos,
Comeram o pó e
beberam o próprio suor.
Não se banharam no
regato livre.
Entretanto, a
transfiguração precede a morte.
Cada um deve assumi-la
em carne e espírito
Para que a alegria
seja completa e definitiva.
4
É necessário conhecer
seu próprio abismo
E polir sempre o
candelabro que o esclarece.
Tudo no universo
marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é
uma vasta expectação
Onde se tocam o
princípio e o fim.
A terra terá que ser
retalhada entre todos
E restituída em tempo
à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a
arquitetura perfeita:
A aurora é coletiva.
De: “Poesia Liberdade”
(1947)
Aurora Boreal
(Michael Creese:
pintor norte-americano)
Referência:
MENDES, Murilo. Poema dialético. In:
TORRES, Alexandre Pinheiro (Seleção, Introdução e Notas). Antologia da
poesia brasileira: os modernistas. v. III. Porto, PT: Livraria Chardron de
Lello & Irmão Editores, 1984. p. 730-731.
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