Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 21 de agosto de 2016

Fernando Pessoa - A criança que fui chora na estrada

Dois sonetos e uma quadra de Pessoa para explicitar as várias pessoas que há dentro de si, desde a criança de mais tenra idade até a multidão que lhe habita as profundezas d’alma, como uma entidade que se multiplica em frente a um espelho saído, v.g., de um conto de Borges.

E a ser tantos num único ser, o poeta termina por se desconhecer, a nenhum sendo, sendo a todos – “personalitas multiplex” –, um deus que habita todas as paragens desse vasto espírito criador.

J.A.R. – H.C.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar.

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

Menino com o seu cão
(Gerard ter Borch: pintor holandês)

II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

Nu descendo uma escada nº 2
(Marcel Duchamp: artista francês)

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.

(22/9/1933)

Fundo do Rio
(Xia Xiaowan: artista chinês)

Referência:

PESSOA, Fernando. A criança que fui chora na estrada. In: __________. Poesias inéditas & Poemas dramáticos. Organização, ensaio biobibliográfico, apresentação e notas de Jane Tutikian. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 211-212. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 1152)

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