Dois sonetos e uma quadra de Pessoa para explicitar as várias pessoas
que há dentro de si, desde a criança de mais tenra idade até a multidão que lhe
habita as profundezas d’alma, como uma entidade que se multiplica em frente a
um espelho saído, v.g., de um conto de Borges.
E a ser tantos num único ser, o poeta termina por se desconhecer, a
nenhum sendo, sendo a todos – “personalitas multiplex” –, um deus que habita todas
as paragens desse vasto espírito criador.
J.A.R. – H.C.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
I
A criança que fui
chora na estrada.
Deixei-a ali quando
vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o
que sou é nada,
Quero ir buscar quem
fui onde ficou.
Ah, como hei de
encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a
regressão errada.
Já não sei de onde
vim nem onde estou.
De o não saber, minha
alma está parada.
Se ao menos atingir
neste lugar
Um alto monte, de
onde possa enfim
O que esqueci,
olhando-o, relembrar.
Na ausência, ao
menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual
fui ao longe, achar
Em mim um pouco de
quando era assim.
Menino com o seu cão
(Gerard ter Borch:
pintor holandês)
II
Dia a dia mudamos
para quem
Amanhã não veremos.
Hora a hora
Nosso diverso e
sucessivo alguém
Desce uma vasta
escadaria agora.
E uma multidão que
desce, sem
Que um saiba de
outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa
semelhança têm!
São um múltiplo mesmo
que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou
eu, a todos sendo.
E a multidão
engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de
onde vai crescendo.
Sinto-os a todos
dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo,
vou descendo
Até passar por todos
e perder-me.
Nu descendo uma escada nº 2
(Marcel Duchamp:
artista francês)
III
Meu Deus! Meu Deus!
Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou?
Quem quero ser
Mora, distante, onde
meu ser esqueço,
Parte, remoto, para
me não ter.
(22/9/1933)
Fundo do Rio
(Xia Xiaowan: artista
chinês)
Referência:
PESSOA, Fernando. A criança que fui
chora na estrada. In: __________. Poesias
inéditas & Poemas dramáticos. Organização, ensaio biobibliográfico,
apresentação e notas de Jane Tutikian. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p.
211-212. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 1152)
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