Drummond tece loas à
capacidade humana para reinventar-se e transcender as limitações do plano
material, pois que a verdadeira sabedoria e poder não estão na tecnologia, na
posse de grandes quantias em dinheiro ou nas ideologias, senão no dom de se
trazer luz e ordem a este caótico mundo, cheio de ódios e ambições
desmesuradas.
Com efeito, o poeta
reinterpreta a narrativa do nascimento de Cristo, pelo concerto de uma trama
poética cujos temas fundamentais gravitam em torno do mando, da justiça e da
redenção, em cujas entrelinhas podem-se também perceber as pautas diagonais suscitadas
por conteúdos de ordem mística, filosófica e, até mesmo, social. No corpo do
poema, em seu conjunto, a esperança de que, sendo a Terra um lugar de infinitas
possibilidades, a ação humana possa convergir para um trato mais justo e
fraterno.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
O Rei menino
O estandarte do Rei
não é de púrpura e brocado,
é um lírio flutuante
sobre o caos
onde ambições se
digladiam
e ódios se
estraçalham.
O Rei vem cumprir o
anúncio de Isaías:
vem para evangelizar
os brutos,
consolar os que
choram,
exaltar os cobertos
de cinza,
desentranhar o
sentido exato da paz,
magnificar a justiça.
Entre Belém e Judá e
Wall Street
no torvelinho de
negociações equívocos,
a vergasta de luz
deixa atônitos os fariseus.
Cegos distinguem o
sinal,
surdos captam a
melodia de anjos-cantadores,
mudos descobrem o
movimento da palavra.
O Rei sem manto e sem
joias,
nu como folha de
erva,
distribui riquezas
não tituladas.
Oferece a
transparência
da alma liberta de
cuidados vis.
As coisas já não são
as antigas coisas
de perecível beleza
e o homem não é mais
cativo de sua sombra.
A limitação dos seres
foi vencida
por uma alegria não
censurada,
graça de reinventar a
Terra,
antes castigo e
exílio,
hoje flecha em
direção infinita.
O Rei, criança,
permanecerá criança
mesmo sob vestes trágicas
porque assim o vimos
e queremos,
assim nos curvamos diante
do seu berço
tecido de palha,
vento e ar.
Seu sangrento destino
prefixado não dilui
a luminosidade desta
cena.
O menino, apenas um
menino,
acima das filosofias,
da cibernética e dos dólares,
sustenta o peso do
mundo
na palma ingênua das
mãos.
Em: “Farewell” (1996)
A Adoração dos
Pastores
(Giorgione: pintor
italiano)
Referência:
ANDRADE, Carlos Drummond. O Rei menino. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 20-21.



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