Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 27 de dezembro de 2025

Carlos Drummond de Andrade - O Rei menino

Drummond tece loas à capacidade humana para reinventar-se e transcender as limitações do plano material, pois que a verdadeira sabedoria e poder não estão na tecnologia, na posse de grandes quantias em dinheiro ou nas ideologias, senão no dom de se trazer luz e ordem a este caótico mundo, cheio de ódios e ambições desmesuradas.

 

Com efeito, o poeta reinterpreta a narrativa do nascimento de Cristo, pelo concerto de uma trama poética cujos temas fundamentais gravitam em torno do mando, da justiça e da redenção, em cujas entrelinhas podem-se também perceber as pautas diagonais suscitadas por conteúdos de ordem mística, filosófica e, até mesmo, social. No corpo do poema, em seu conjunto, a esperança de que, sendo a Terra um lugar de infinitas possibilidades, a ação humana possa convergir para um trato mais justo e fraterno.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

O Rei menino

 

O estandarte do Rei não é de púrpura e brocado,

é um lírio flutuante sobre o caos

onde ambições se digladiam

e ódios se estraçalham.

O Rei vem cumprir o anúncio de Isaías:

vem para evangelizar os brutos,

consolar os que choram,

exaltar os cobertos de cinza,

desentranhar o sentido exato da paz,

magnificar a justiça.

 

Entre Belém e Judá e Wall Street

no torvelinho de negociações equívocos,

a vergasta de luz deixa atônitos os fariseus.

Cegos distinguem o sinal,

surdos captam a melodia de anjos-cantadores,

mudos descobrem o movimento da palavra.

O Rei sem manto e sem joias,

nu como folha de erva,

distribui riquezas não tituladas.

Oferece a transparência

da alma liberta de cuidados vis.

 

As coisas já não são as antigas coisas

de perecível beleza

e o homem não é mais cativo de sua sombra.

A limitação dos seres foi vencida

por uma alegria não censurada,

graça de reinventar a Terra,

antes castigo e exílio,

hoje flecha em direção infinita.

 

O Rei, criança,

permanecerá criança mesmo sob vestes trágicas

porque assim o vimos e queremos,

assim nos curvamos diante do seu berço

tecido de palha, vento e ar.

 

Seu sangrento destino prefixado não dilui

a luminosidade desta cena.

O menino, apenas um menino,

acima das filosofias, da cibernética e dos dólares,

sustenta o peso do mundo

na palma ingênua das mãos.

 

Em: “Farewell” (1996)

 

A Adoração dos Pastores

(Giorgione: pintor italiano)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond. O Rei menino. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 20-21. 

 

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