Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Gillian Clarke - Neve

A poetisa galesa emprega uma imagética repleta de lirismo, típica das temporadas invernais, para expressar, no poema abaixo, a dualidade entre o divino e o humano, o pacífico e o conflitivo: com efeito, os versos transitam de uma queda algo mágica da neve sobre a terra – sugerindo paz e harmonia celestial –, passando por momentos de familiaridade e calidez, entremeados a uma cena mais sombria (de algum modo a evocar o tema das migrações forçadas de refugiados), metáfora explícita para a vulnerabilidade de muitos e das injustiças que grassam pelos quatro cantos do planeta, como que a nos lembrar de que, sob a abóbada celeste, não estamos isentos de turbulências e inquietações.

 

Mas a mensagem final das linhas, longe de ser desalentadora, expressa uma visão intimista e esperançosa, de contemplação, de renovação e redenção, assim como a sugere os dois derradeiros versos, cujo teor alude ao poder que tem a neve (ela mesma um outro tropo válido para a passagem do tempo) de apagar o passado e recobrir vestígios, estrelando-os com o brilho de outras sortes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Gillian Clarke

(n. 1937)

 

Snow

 

The dreamed Christmas,

flakes shaken out of silences so far

and starry we can’t sleep for listening

for papery rustles out there in the night

and wake to find our ceiling glimmering,

the day a psaltery of light.

 

So we’re out over the snow fields

before it’s all seen off with a salt-lick

of Atlantic air, then home at dusk, snow-blind

from following chains of fox and crow and hare,

to a fire, a roasting bird, a ringing phone,

and voices wondering where we are.

 

A day foretold by images

of glassy pond, peasant and snowy roof

over the holy child iconed in gold.

Or women shawled against the goosedown air

pleading with soldiers at a shifting frontier

in the snows of television,

 

while in the secret dark a fresh snow falls

filling our tracks with stars.

 

Paisagem de Inverno

(Wassily Kandinsky: pintor russo)

 

Neve

 

O sonhado Natal,

flocos agitados de silêncios tão longínquos

e estrelados, que não conseguimos adormecer ouvindo

ruídos idênticos a farfalhares de papéis lá fora, na noite,

e acordarmos para encontrar o nosso teto brilhando,

o dia feito um saltério de luz.

 

Então atravessamos os campos nevados

antes que tudo se dissipasse sob uma salgada lufada

da brisa atlântica, depois voltamos a casa ao anoitecer –

ofuscados pela neve

por termos seguido os rastros de raposas, corvos e lebres –,

para um brasido, um assado de ave, um telefone a tocar

e vozes perguntando sobre o lugar onde estamos.

 

Um dia predito por imagens

de um lago cristalino, camponeses e um teto nevado

sobre o ícone dourado do santo menino.

Ou mulheres envoltas em xales, contra o ar frio e etéreo,

implorando aos soldados numa fronteira instável

nas neves da televisão,

 

enquanto que, na secreta escuridão, segue em queda

uma neve fresca a preencher de estrelas os nossos rastros.

 

Referência:

 

CLARKE, Gillian. Snow. In: __________. Five fields. Manchester, EN: Carcanet Press, 1998. p. 38.

 

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