A poetisa galesa
emprega uma imagética repleta de lirismo, típica das temporadas invernais, para
expressar, no poema abaixo, a dualidade entre o divino e o humano, o pacífico e
o conflitivo: com efeito, os versos transitam de uma queda algo mágica da neve
sobre a terra – sugerindo paz e harmonia celestial –, passando por momentos de
familiaridade e calidez, entremeados a uma cena mais sombria (de algum modo a
evocar o tema das migrações forçadas de refugiados), metáfora explícita para a
vulnerabilidade de muitos e das injustiças que grassam pelos quatro cantos do planeta,
como que a nos lembrar de que, sob a abóbada celeste, não estamos isentos de
turbulências e inquietações.
Mas a mensagem final das
linhas, longe de ser desalentadora, expressa uma visão intimista e esperançosa,
de contemplação, de renovação e redenção, assim como a sugere os dois
derradeiros versos, cujo teor alude ao poder que tem a neve (ela mesma um outro
tropo válido para a passagem do tempo) de apagar o passado e recobrir vestígios,
estrelando-os com o brilho de outras sortes.
J.A.R. – H.C.
Gillian Clarke
(n. 1937)
flakes shaken out of
silences so far
and starry we can’t
sleep for listening
for papery rustles
out there in the night
and wake to find our
ceiling glimmering,
the day a psaltery of
light.
So we’re out over the snow fields
before it’s all seen off with a salt-lick
of Atlantic air, then home at dusk, snow-blind
from following chains of fox and crow and hare,
to a fire, a roasting bird, a ringing phone,
and voices wondering where we are.
A day foretold by images
of glassy pond, peasant and snowy roof
over the holy child iconed in gold.
Or women shawled against the goosedown air
pleading with soldiers at a shifting frontier
in the snows of television,
while in the secret dark a fresh snow falls
filling our tracks with stars.
Paisagem de Inverno
(Wassily Kandinsky:
pintor russo)
Neve
O sonhado Natal,
flocos agitados de
silêncios tão longínquos
e estrelados, que não
conseguimos adormecer ouvindo
ruídos idênticos a
farfalhares de papéis lá fora, na noite,
e acordarmos para
encontrar o nosso teto brilhando,
o dia feito um
saltério de luz.
Então atravessamos os
campos nevados
antes que tudo se
dissipasse sob uma salgada lufada
da brisa atlântica,
depois voltamos a casa ao anoitecer –
ofuscados pela neve
por termos seguido os
rastros de raposas, corvos e lebres –,
para um brasido, um
assado de ave, um telefone a tocar
e vozes perguntando
sobre o lugar onde estamos.
Um dia predito por
imagens
de um lago cristalino,
camponeses e um teto nevado
sobre o ícone dourado
do santo menino.
Ou mulheres envoltas
em xales, contra o ar frio e etéreo,
implorando aos
soldados numa fronteira instável
nas neves da televisão,
enquanto que, na
secreta escuridão, segue em queda
uma neve fresca a preencher
de estrelas os nossos rastros.
Referência:
CLARKE, Gillian.
Snow. In: __________. Five fields. Manchester, EN: Carcanet Press, 1998.
p. 38.



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