Com um título ambivalente,
a encapsular a dualidade central do poema, Vinicius põe em contraste o sagrado
e o profano, a pureza e a experiência carnal, a inocência perdida e a sabedoria
adquirida, evocando memórias e afluências de desejo erótico tão intrincadas
quanto as contas de um rosário, ao sabor de uma luta interna entre o
extravasamento dos impulsos e os freios injungidos pela consciência.
Tudo se liga a uma
trama de significados atinentes à iniciação sexual do falante, enredado com uma
mulher de cor, cujos atributos são declinados em termos não exatamente dignificantes
(v.g., “era uma moça que dava”, “grande filha de uma vaca”), deixando entrever as
desigualdades sociais, extensíveis à exploração e à marginalização feminina em
contextos urbanos.
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Rosário
E eu que era um
menino puro
Não fui perder minha
infância
No mangue daquela
carne!
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma moça que
dava.
Deixava... mesmo no
mar
Onde se fazia em água
Onde de um peixe que
era
Em mil se
multiplicava
Onde suas mãos de
alga
Sobre meu corpo
boiavam
Trazendo à tona águas-vivas
Onde antes não tinha
nada.
Quanto meus olhos não
viram
No céu da areia da
praia
Duas estrelas escuras
Brilhando entre
aquelas duas
Nebulosas
desmanchadas
E não beberam meus
beijos
Aqueles olhos
noturnos
Luzindo de luz parada
Na imensa noite da
ilha!
Era minha namorada
Primeiro nome de
amada
Primeiro chamar de
filha...
Grande filha de uma
vaca!
Como não me seduzia
Como não me alucinava
Como deixava,
fingindo
Fingindo que não
deixava!
Aquela noite entre
todas
Que cica os cajus!
travavam!
Como era quieto o sossego
Cheirando a
jasmim-do-cabo
Lembro que nem se
mexia
O luar esverdeado
Lembro que longe, nos
longes
Um gramofone tocava
Lembro dos seus anos
vinte
Junto aos meus quinze
deitados
Sob a luz verde da
lua!
Ergueu a saia de um
gesto
Por sobre a perna
dobrada
Mordendo a carne da
mão
Me olhando sem dizer
nada
Enquanto jazente eu
via
Como uma anêmona na
água
A coisa que se movia
Ao vento que a
farfalhava.
Toquei-lhe a dura
pevide
Entre o pelo que a
guardava
Beijando-lhe a coxa
fria
Com gosto de cana brava.
Senti à pressão do
dedo
Desfazer-se
desmanchada
Como um dedal de
segredo
A pequenina castanha
Gulosa de ser tocada.
Era uma dança morena
Era uma dança mulata
Era o cheiro de
amarugem
Era a lua cor de
prata
Mas foi só naquela
noite!
Passava dando risada
Carregando os peitos
loucos
Quem sabe para quem,
quem sabe?
Mas como me seduzia
A negra visão escrava
Daquele feixe de
águas
Que sabia ela
guardava
No fundo das coxas
frias!
Mas como me
desbragava
Na areia mole e
macia!
A areia me recebia
E eu baixinho me
entregava
Com medo que Deus
ouvisse
Os gemidos que não
dava!
Os gemidos que não
dava
Por amor do que ela
dava
Aos outros de mais
idade
Que a carregaram da
ilha
Para as ruas da
cidade
Meu grande sonho da
infância
Angústia da mocidade.
A portas fechadas
(Anthony Falbo:
artista norte-americano)
Referência:
MORAES, Vinicius de.
Rosário. In: __________. Antologia poética. Segunda edição revista e
aumentada. Rio de Janeiro, GB: Editora do Autor, 1960. p. 158-160.
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