Nestes versos de
Gullar, não se trata do poema em si, senão da própria vida humana, com suas
lutas, lanhos, complexidades e contradições, o seu constante oscilar entre
perdas e ganhos, entre derrocadas e ascensos. A vida que, no caso, se passa num
ambiente citadino, ao mesmo tempo “fabril e imaginário”, autêntico refúgio
coletivo a abarcar um terreno fértil onde se manifesta o obscuro presente e o
pânico corporificado.
No coração do homem a
vida pulsa como se uma “clandestina esperança” fosse, “misturada ao sal do mar”;
esperança que jamais se rende, que persiste inclusive nas condições mais difíceis,
constrita entre percalços e desilusões, a nos incitar para que porfiemos na busca
por sentido e realização, empenhando-nos em nos fazer presentes plenamente onde
quer que estejamos.
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(1930-2016)
A vida bate
Não se trata do poema
e sim do homem
e sua vida
– a mentida, a
ferida, a consentida
vida já ganha e já
perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema
e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar
entre constelações
e embrulhos, entre
engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a
Santiago
do Chile. Outros
ficam
mesmo na Rua da
Alfândega, detrás
de balcões e de
guichês.
Todos te buscam,
facho
de vida, escuro e
claro,
que é mais que a água
na grama
que o banho no mar,
que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só
alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não
te reconhecem
e há os que se perdem
por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em
qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre
águas azuis.
A cidade. Vista do
alto
ela é fabril e
imaginária, se entrega inteira
como se estivesse
pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e
ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem,
pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido
presente, sua
carnadura de pânico:
as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem,
que passam
sem rir, sem falar,
entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que
passam sem falar
e estão cheias de
vozes
e ruínas. És Antônio?
És Francisco? És
Mariana?
Onde escondeste o
verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se
apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores
sufocadas.
Mas, dentro, no
coração,
eu sei,
a vida bate.
Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no
Harlem, em Nova Délhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina
esperança
misturada ao sal do
mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de
meu quarto em Ipanema
na América Latina.
Em: “Dentro da noite
veloz” (1975)
Jovem à sua janela
(Gustave Caillebotte:
pintor francês)
Referência:
GULLAR, Ferreira. A
vida bate. In: __________. Dentro da noite veloz. Prefácio de Armando
Freitas Filho. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 50-52.
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