Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Ferreira Gullar - A vida bate

Nestes versos de Gullar, não se trata do poema em si, senão da própria vida humana, com suas lutas, lanhos, complexidades e contradições, o seu constante oscilar entre perdas e ganhos, entre derrocadas e ascensos. A vida que, no caso, se passa num ambiente citadino, ao mesmo tempo “fabril e imaginário”, autêntico refúgio coletivo a abarcar um terreno fértil onde se manifesta o obscuro presente e o pânico corporificado.

 

No coração do homem a vida pulsa como se uma “clandestina esperança” fosse, “misturada ao sal do mar”; esperança que jamais se rende, que persiste inclusive nas condições mais difíceis, constrita entre percalços e desilusões, a nos incitar para que porfiemos na busca por sentido e realização, empenhando-nos em nos fazer presentes plenamente onde quer que estejamos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ferreira Gullar

(1930-2016)

 

A vida bate

 

Não se trata do poema e sim do homem

e sua vida

– a mentida, a ferida, a consentida

vida já ganha e já perdida e ganha

outra vez.

Não se trata do poema e sim da fome

de vida,

o sôfrego pulsar entre constelações

e embrulhos, entre engulhos.

 Alguns viajam, vão

a Nova York, a Santiago

do Chile. Outros ficam

mesmo na Rua da Alfândega, detrás

de balcões e de guichês.

  Todos te buscam, facho

de vida, escuro e claro,

que é mais que a água na grama

que o banho no mar, que o beijo

na boca, mais

que a paixão na cama.

Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns

te acham e te perdem.

Outros te acham e não te reconhecem

e há os que se perdem por te achar,

 ó desatino

ó verdade, ó fome

de vida!

O amor é difícil

mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.

E estamos na cidade

sob as nuvens e entre águas azuis.

 

A cidade. Vista do alto

ela é fabril e imaginária, se entrega inteira

como se estivesse pronta.

Vista do alto,

com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade

é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.

Mas vista

de perto,

revela o seu túrbido presente, sua

carnadura de pânico: as

pessoas que vão e vêm

que entram e saem, que passam

sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro

sangue urbano

movido a juros.

 

São pessoas que passam sem falar

e estão cheias de vozes

e ruínas. És Antônio?

És Francisco? És Mariana?

Onde escondeste o verde

clarão dos dias? Onde

escondeste a vida

que em teu olhar se apaga mal se acende?

E passamos

carregados de flores sufocadas.

Mas, dentro, no coração,

eu sei,

 a vida bate. Subterraneamente,

a vida bate.

Em Caracas, no Harlem, em Nova Délhi,

sob as penas da lei,

em teu pulso,

a vida bate.

E é essa clandestina esperança

misturada ao sal do mar

que me sustenta

esta tarde

debruçado à janela de meu quarto em Ipanema

na América Latina.

 

Em: “Dentro da noite veloz” (1975)

 

Jovem à sua janela

(Gustave Caillebotte: pintor francês)

 

Referência:

 

GULLAR, Ferreira. A vida bate. In: __________. Dentro da noite veloz. Prefácio de Armando Freitas Filho. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2018. p. 50-52.

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