O sujeito lírico se
rebela contra a existência que lhe é imposta pela sociedade, a estabelecer limitações
e rotinas de uma vida trivial e burocrática – em cujo curso há de conformar-se “engolindo
sapos” –, enquanto sonha com a edificação de um reino de autonomia,
autoafirmação e transgressão criativa, no terreno da palavra escrita.
É ali que experimenta
um “extremo prazer”, em companhia de “terríveis e solidários cúmplices”, digo
melhor, grandes escritore(a)s que lhe servem como inspiradore(a)s nessa arte de
convulsionar a linguagem nos escaninhos de um espaço privado e íntimo, sobre o
qual impera como um “ditador de coração democrático”, decerto tensionado entre a
necessidade de expressar seus sentimentos e o receio de vir a ser
incompreendido.
J.A.R. – H.C.
Jovino Machado
(n. 1963)
Cúmplices
Vou sempre burlar a
existência burocrática
que a vida me impõe,
e isso já é mágico.
Quando por trás se
riem de mim,
não sabem que leio no
trabalho;
que sou rei do meu
reino, com direito a ficar puto
com o meu único
súdito que sou eu mesmo.
Faço de Poe, o Edgar,
e de Clarice, a Lispector,
meus mais terríveis e
solidários cúmplices.
O sol é o sol e eu
sou tudo o que posso imaginar:
um ditador de coração
democrático.
As palavras saem e
entram na minha própria boca:
não passam por nenhum
ouvido.
Muitas jamais
conseguirão sair,
aprisionadas que são
pelo fogo-fátuo da tristeza.
No entanto, me sufoco
de extremo prazer
em dizer tudo isso
agora em versos.
Compensa o tempo da
minha vida que,
em silêncio, engulo
sapos.
Em: “Deselegância
discreta” (1993)
O poeta
(Pablo Picasso:
pintor espanhol)
Referência:
MACHADO, Jovino.
Cúmplices. In: BRASIL, Assis (Organização, introdução e notas). A poesia
mineira no século XX: antologia. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1998. p. 271.
(Coleção “Poesia Brasileira”)
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