Num intrincado
revolver de pensamentos e sentimentos, questionamentos e perplexidades, o poeta
desencadeia uma longa reflexão sobre os temas da identidade, do pertencimento,
da passagem do tempo e do propósito e efemeridade da vida, em meio a uma
realidade que o obsedia, invariavelmente pautada por papéis a representar e
responsabilidades a assumir.
O ente lírico, que se
identifica com um “eu” plural, se pergunta quem de fato é e onde se encontra, dando
a impressão ao leitor que se acha desorientado ou desconectado do entorno, como
se fruindo uma vida que não lhe pertence. Entrementes, contudo, deixa subentendidas
as suas fórmulas nas entrelinhas: para não se incorrer em inatividade, a necessidade
de se realizar ações significativas que façam a diferença; para não se afundar
no alheamento e no solipsismo – indefectivelmente repulsados pela coletividade –,
a interação familiar e social saudável, numa postura coerente perante a vida.
J.A.R. – H.C.
Ruy Belo
(1933-1978)
Ácidos e óxidos
É uma coisa estranha
este verão
E no entanto ia jurar
que estive aqui
Não me dói nada, não.
A tia como está?
Claro que vale a pena,
por que não?
Sim, sou eu, devo sem
dúvida ser eu
Podem contar comigo,
eu tenho uma doutrina
Não é bonito o mar,
as ondas, tudo isto?
Até já soube formas
de o dizer de outra maneira
Há coisas
importantes, umas mais que outras
Basta limpar os pés
alheios à entrada
e só mandarmos nós
neste templo de nada
E o orgulho é a nossa
verdadeira casa
Nesta altura do ano
quando o vento sopra
sobre os nossos dias,
sabes quem gostava de ser?
Não, cargos ou honras
não. Um simples gato ao sol,
talvez uma maneira ou
um sentido para as coisas
Ó dias encobertos de
verão do meu país perdido
mais certos do que o
sol consumido nos charcos no inverno,
estas ou outras
formas de morrermos dia a dia
como quem cumpre
escrupulosamente o seu horário
de trabalho
Não eras tu, nem
isto, nem aqui. Mas está bem,
estou pelos ajustes
porque sei que não há mais
Pode ser que me
engane, pode ser que seja eu
e no entanto estou de
pé, rebolo-me no sol,
sou filho desta terra
e vou fazendo anos
pois não se pode
estar sem fazer nada
Curriculum atestado
testemunho opinião...
que importa, se o
verão é mesmo uma certa estação?
Escolhe inscreve-te
pertence, não concordas
que há cores mais
bonitas do que outras?
Sou homem de palavra
e hei-de cumprir tudo
hão-de encontrar
coerência em cada gesto meu
Ser isto e não
aquilo, amar perdidamente
alguém alguma coisa
as cláusulas do pacto
Isto ou aquilo, ou
ele ou eu, sem mais hesitações
Estar aqui no verão
não é tomar uma atitude?
A mínima palavra não
será como prestar
em certo tipo de
papel qualquer declaração?
Há fórmulas, bem sei,
e é preciso respeitá-las
como o gato que
cumpre o seu devido sol
São horas, vamos lá,
sorri, já as primeiras chuvas
levam ou lavam corpos
caras
Sabemos que podemos
bem contar contigo em tudo
Amanhã, neste lugar,
sob este sol
e de aqui a um ano?
Combinado
Não achas que a
esplanada é uma pequena pátria
a que somos fiéis?
Sentamo-nos aqui como quem nasce
Será verdade que não
tens ninguém?
Onde é o teu refúgio,
ó sítio de silêncio
e sofrimento indivisível?
É necessário
Vais assim. Falam de
ti e ficas nas palavras
fixo, imóvel, dito
para sempre, reduzido
a um número.
Curriculum cadastro vizinhança
Acreditas no verão?
Terás licença? Diz-me:
seria isto, nada mais
que isto?
Tens um nome, bem
sei. Se é ele que te reduz,
aí é o inferno e não
achas saída
Precário, provisório,
é o teu nome
Lobos de sono atrás
de ti nesses dez anos
que nunca conseguiste
e muito menos hoje
Espingardas e uivos e
regressos, um regaço
redondo – o único
verdadeiro espaço, o
sabor de não estar
só, natal antigo,
o sol de inverno
sobre as águas, tudo novo,
a inspecção minuciosa
de pauis, de cômoros, marachas
Viste noites e dias,
estações, partidas
E tão terrível tudo,
porque tudo
trazia no princípio o
fim de tudo
A morte é a promessa:
estar todo num lugar,
permanecer na
transparência rápida do ser
E perguntar será para
ti responder
Simples questão de
tempo és e a certas circunstâncias
de lugar
circunscreves o
corpo. Sentas-te, levantas-te
e o sol bate por
vezes nessa fronte aonde o pensamento
– que ao dominar-te
deixa que domines – mora
Estás e nunca estás e
o vento vem e vergas
e há também a chuva e
por vezes molhas-te,
aceitas servidões
quotidianas, vais de aqui para ali,
animas-te, esmoreces,
há os outros, morres
Mas quando foi? Aonde
te doía? Dividias-te
entre o fim do verão
e a renda da casa
Que fica dos teus
passos dados e perdidos?
Horário de trabalho,
uma família, o telefone, a carta,
o riso que resulta de
seres vítima de olhares
Que resto dás? Ou
porventura deixas algum rasto?
E assim e assado
sofro tanto tempo gasto
Em: “Boca bilingue”
(1966)
Perfil de gato na
praia
(N. Akkash: artista
equatoriano)
Referência:
BELO, Ruy. Ácidos e
óxidos. In: __________. Obra poética, vol. 1. Organização e posfácio de Joaquim
Manuel Magalhães. 2. ed. Lisboa, PT: Editorial Presença, 1984. p. 113-115.
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