Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Ruy Belo - Ácidos e óxidos

Num intrincado revolver de pensamentos e sentimentos, questionamentos e perplexidades, o poeta desencadeia uma longa reflexão sobre os temas da identidade, do pertencimento, da passagem do tempo e do propósito e efemeridade da vida, em meio a uma realidade que o obsedia, invariavelmente pautada por papéis a representar e responsabilidades a assumir.

 

O ente lírico, que se identifica com um “eu” plural, se pergunta quem de fato é e onde se encontra, dando a impressão ao leitor que se acha desorientado ou desconectado do entorno, como se fruindo uma vida que não lhe pertence. Entrementes, contudo, deixa subentendidas as suas fórmulas nas entrelinhas: para não se incorrer em inatividade, a necessidade de se realizar ações significativas que façam a diferença; para não se afundar no alheamento e no solipsismo – indefectivelmente repulsados pela coletividade –, a interação familiar e social saudável, numa postura coerente perante a vida.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ruy Belo

(1933-1978)

 

Ácidos e óxidos

 

É uma coisa estranha este verão

E no entanto ia jurar que estive aqui

Não me dói nada, não. A tia como está?

Claro que vale a pena, por que não?

Sim, sou eu, devo sem dúvida ser eu

Podem contar comigo, eu tenho uma doutrina

Não é bonito o mar, as ondas, tudo isto?

Até já soube formas de o dizer de outra maneira

Há coisas importantes, umas mais que outras

Basta limpar os pés alheios à entrada

e só mandarmos nós neste templo de nada

E o orgulho é a nossa verdadeira casa

Nesta altura do ano quando o vento sopra

sobre os nossos dias, sabes quem gostava de ser?

Não, cargos ou honras não. Um simples gato ao sol,

talvez uma maneira ou um sentido para as coisas

 

Ó dias encobertos de verão do meu país perdido

mais certos do que o sol consumido nos charcos no inverno,

estas ou outras formas de morrermos dia a dia

como quem cumpre escrupulosamente o seu horário

de trabalho

Não eras tu, nem isto, nem aqui. Mas está bem,

estou pelos ajustes porque sei que não há mais

Pode ser que me engane, pode ser que seja eu

e no entanto estou de pé, rebolo-me no sol,

sou filho desta terra e vou fazendo anos

pois não se pode estar sem fazer nada

 

Curriculum atestado testemunho opinião...

que importa, se o verão é mesmo uma certa estação?

Escolhe inscreve-te pertence, não concordas

que há cores mais bonitas do que outras?

Sou homem de palavra e hei-de cumprir tudo

hão-de encontrar coerência em cada gesto meu

Ser isto e não aquilo, amar perdidamente

alguém alguma coisa as cláusulas do pacto

Isto ou aquilo, ou ele ou eu, sem mais hesitações

Estar aqui no verão não é tomar uma atitude?

A mínima palavra não será como prestar

em certo tipo de papel qualquer declaração?

Há fórmulas, bem sei, e é preciso respeitá-las

como o gato que cumpre o seu devido sol

São horas, vamos lá, sorri, já as primeiras chuvas

levam ou lavam corpos caras

Sabemos que podemos bem contar contigo em tudo

Amanhã, neste lugar, sob este sol

e de aqui a um ano? Combinado

Não achas que a esplanada é uma pequena pátria

a que somos fiéis? Sentamo-nos aqui como quem nasce

 

Será verdade que não tens ninguém?

Onde é o teu refúgio, ó sítio de silêncio

e sofrimento indivisível? É necessário

Vais assim. Falam de ti e ficas nas palavras

fixo, imóvel, dito para sempre, reduzido

a um número. Curriculum cadastro vizinhança

Acreditas no verão? Terás licença? Diz-me:

seria isto, nada mais que isto?

Tens um nome, bem sei. Se é ele que te reduz,

aí é o inferno e não achas saída

Precário, provisório, é o teu nome

Lobos de sono atrás de ti nesses dez anos

que nunca conseguiste e muito menos hoje

Espingardas e uivos e regressos, um regaço

redondo – o único verdadeiro espaço, o

sabor de não estar só, natal antigo,

o sol de inverno sobre as águas, tudo novo,

a inspecção minuciosa de pauis, de cômoros, marachas

Viste noites e dias, estações, partidas

E tão terrível tudo, porque tudo

trazia no princípio o fim de tudo

A morte é a promessa: estar todo num lugar,

permanecer na transparência rápida do ser

E perguntar será para ti responder

 

Simples questão de tempo és e a certas circunstâncias

de lugar

circunscreves o corpo. Sentas-te, levantas-te

e o sol bate por vezes nessa fronte aonde o pensamento

– que ao dominar-te deixa que domines – mora

Estás e nunca estás e o vento vem e vergas

e há também a chuva e por vezes molhas-te,

aceitas servidões quotidianas, vais de aqui para ali,

animas-te, esmoreces, há os outros, morres

Mas quando foi? Aonde te doía? Dividias-te

entre o fim do verão e a renda da casa

Que fica dos teus passos dados e perdidos?

Horário de trabalho, uma família, o telefone, a carta,

o riso que resulta de seres vítima de olhares

Que resto dás? Ou porventura deixas algum rasto?

E assim e assado sofro tanto tempo gasto

 

Em: “Boca bilingue” (1966)

 

Perfil de gato na praia

(N. Akkash: artista equatoriano)

 

Referência:

 

BELO, Ruy. Ácidos e óxidos. In: __________. Obra poética, vol. 1. Organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães. 2. ed. Lisboa, PT: Editorial Presença, 1984. p. 113-115.

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