O ente lírico,
personificado em Camões, acusa os seus contemporâneos de serem incapazes de
produzir arte original ou criativa, recorrendo, no mais das vezes, à
apropriação do trabalho de outros artistas para se promoverem ou mesmo se
sustentarem: ao final, tudo o que laboriosamente pilharem acabará por se
reverter, no caso vertente, ao nome do próprio Camões – inclusive aquilo que,
eventualmente sem rapinagem, houverem concebido.
Noutra perspectiva,
poder-se-ia dizer que, mesmo diante da tentativa de se deslustrar ou usurpar a
sua herança literária – coligida num acervo de palavras, imagens, metáforas,
temas, motivos, símbolos e, até mesmo, num quadro de “primazia nas dores
sofridas de uma língua nova” –, “Camões” acredita na imortalidade de sua obra,
reivindicando a legitimidade e a permanência de seu legado e de sua contribuição
para a cultura, sobretudo a portuguesa.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Sena
(1919-1978)
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Podereis roubar-me
tudo:
as ideias, as
palavras, as imagens,
e também as
metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a
primazia
nas dores sofridas de
uma língua nova,
no entendimento de
outros, na coragem
de combater, julgar,
de penetrar
em recessos de amor
para que sois castrados.
E podereis depois não
me citar,
suprimir-me,
ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais
felizes.
Não importa nada: que
o castigo
será terrível. Não só
quando
vossos netos não
souberem já quem sois
terão de me saber
melhor ainda
do que fingis que não
sabeis,
como tudo, tudo o que
laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu
nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado
como meu,
até mesmo aquele
pouco e miserável
que, só por vós, sem
roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas
nada: nem os ossos,
que um vosso
esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu.
E para outros ladrões,
iguais a vós, de
joelhos, porem flores no túmulo.
Em: “Metamorfoses”
(1963)
Retrato de Luís de
Camões e seu guia
(Gustaf Wappers:
pintor belga)
Referência:
SENA, Jorge de.
Camões dirige-se aos seus contemporâneos. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO,
Alexei (Orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um
panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 87.
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