Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 11 de janeiro de 2025

Jorge de Sena - Camões dirige-se aos seus contemporâneos

O ente lírico, personificado em Camões, acusa os seus contemporâneos de serem incapazes de produzir arte original ou criativa, recorrendo, no mais das vezes, à apropriação do trabalho de outros artistas para se promoverem ou mesmo se sustentarem: ao final, tudo o que laboriosamente pilharem acabará por se reverter, no caso vertente, ao nome do próprio Camões – inclusive aquilo que, eventualmente sem rapinagem, houverem concebido.

 

Noutra perspectiva, poder-se-ia dizer que, mesmo diante da tentativa de se deslustrar ou usurpar a sua herança literária – coligida num acervo de palavras, imagens, metáforas, temas, motivos, símbolos e, até mesmo, num quadro de “primazia nas dores sofridas de uma língua nova” –, “Camões” acredita na imortalidade de sua obra, reivindicando a legitimidade e a permanência de seu legado e de sua contribuição para a cultura, sobretudo a portuguesa.

 

J.A.R. – H.C.

 

Jorge de Sena

(1919-1978)

 

Camões dirige-se aos seus contemporâneos

 

Podereis roubar-me tudo:

as ideias, as palavras, as imagens,

e também as metáforas, os temas, os motivos,

os símbolos, e a primazia

nas dores sofridas de uma língua nova,

no entendimento de outros, na coragem

de combater, julgar, de penetrar

em recessos de amor para que sois castrados.

E podereis depois não me citar,

suprimir-me, ignorar-me, aclamar até

outros ladrões mais felizes.

Não importa nada: que o castigo

será terrível. Não só quando

vossos netos não souberem já quem sois

terão de me saber melhor ainda

do que fingis que não sabeis,

como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,

reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,

tido por meu, contado como meu,

até mesmo aquele pouco e miserável

que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.

Nada tereis, mas nada: nem os ossos,

que um vosso esqueleto há-de ser buscado,

para passar por meu. E para outros ladrões,

iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

 

Em: “Metamorfoses” (1963)

 

Retrato de Luís de Camões e seu guia

(Gustaf Wappers: pintor belga)

 

Referência:

 

SENA, Jorge de. Camões dirige-se aos seus contemporâneos. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (Orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 87.

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