Neste hipotético
diálogo entre um campônio e um anjo, tem-se uma instigação às nossas
corriqueiras percepções sobre o que seja a realidade, frente ao que se atribui
ao plano do transcendental: o anjo representaria a totalidade da existência, a
revelar-se tão apenas parcialmente, haja vista as nossas limitadas
perspectivas.
Ou ainda: a sua
aparição não proporciona respostas definitivas às grandes questões da vida, embora
se preste a tornar mais aguçada a nossa sensibilidade aos matizes e às
incertezas da experiência humana, convertendo-a numa empresa contínua,
impulsionada por um anseio de conhecimento que, em última instância, se mostra
algo fugaz, elusivo.
Encontrar significado
no efêmero, no impreciso, até no ambíguo torna-se a missão do homem, uma
espécie sempre afeita ao simbólico, a rigor nem sempre traduzível à linguagem.
Daí porque o entendimento completo da realidade se nos afigura como uma quimera,
ela tantas vezes fluida e evocativa, a tornar precárias quaisquer formas de
apreensão da verdade e das leis que presidem o vasto cosmos a nos abarcar.
J.A.R. – H.C.
Wallace Stevens
(1879-1955)
One of the
countrymen:
There is
A welcome at the door
to which no one comes?
The angel:
I am the angel of
reality,
Seen for a moment
standing in the door.
I have neither ashen
wing nor wear of ore
And live without a
tepid aureole,
Or stars that follow
me, not to attend,
But, of my being and
its knowing, part.
I am one of you and
being one of you
Is being and knowing
what I am and know.
Yet I am the
necessary angel of earth,
Since, in my sight,
you see the earth again,
Cleared of its stiff
and stubborn, man-locked set,
And, in my hearing,
you hear its tragic drone
Rise liquidly in
liquid lingerings,
Like watery words
awash; like meanings said
By repetitions of
half-meanings. Am I not,
Myself, only half of
a figure of a sort,
A figure half seen,
or seen for a moment, a man
Of the mind, an
apparition apparelled in
Apparels of such
lightest look that a tum
Of my shoulder and
quickly, too quickly, I am gone?
In: “The Auroras of
Autumn” (1950)
Anjo
(Vyacheslav
Shcherbakov: artista bielorrusso)
Anjo Cercado por Paysans
(*)
Um dos campônios:
Há
Boas-vindas à porta
pra ninguém?
O anjo:
Eu sou o anjo da
realidade,
Visto por um instante
na soleira.
Asa de cinza nem
traje áureo tenho
E vivo sem nenhuma
auréola tépida,
Nem estrelas que me
seguem, porém
Do meu ser e seu
saber, fazem parte.
Sou um de vós, e o
ser um de vós
É ser e saber o que
sou e sei.
No entanto, sou o
anjo necessário da terra,
Pois, ao me ver,
vedes a terra outra vez,
Sem seu cenário duro,
travado pelos homens,
E, ao me ouvir, ouvis
seu trágico bordão
A elevar-se leve em
olas líquidas,
Como sílabas em
líquido enlevo, ou sentidos
Ditos em meios
sentidos repetidos.
Pois não sou eu senão
meia figura,
Vulto entrevisto, ou
visto por um instante, homem
Mental, aparição
aparecida em
Vestes tão pouco
visíveis que basta virar
O ombro, e mais que
depressa desapareço?
In: “As Auroras
Boreais do Outono” (1950)
Nota:
(*). Paysans é
a grafia de campônios em francês.
Referência:
STEVENS, Wallace. Angel
surrounded by paysans / Anjo cercado por paysans. Tradução de
Paulo Henriques Britto. In: __________. O imperador do sorvete e outros
poemas. Seleção, tradução, apresentação e notas de Paulo Henriques Britto.
1. ed. revista e ampliada. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017. Em
inglês: p. 254 e 256; em português: p. 255 e 257.
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