Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Pablo Neruda - A meu povo, em janeiro

Pondo-se a refletir sobre um momento crítico na história de sua pátria – o Chile –, Neruda transmite a angústia que lhe vai no espírito, ante a opressão política e os conflitos que derivam de um modo de governar tirânico, frente ao qual há que se mostrar robustez na persistência da memória, reconhecendo as cicatrizes do passado, para se encontrar forças a lhe oporem resistência.

 

A julgar pelo ano de publicação da obra na qual consta o poema – vale dizer, 1959 –, decerto o momento político a que alude o poeta é o da chegada ao poder de um candidato direitista nas eleições de 1958 – uma espécie de “sáurio desdentado”, feroz e desapiedado: entre metáforas da espécie, os versos fluem doridos, enfatizando as injustiças que marcam a história daquele país, sem deixar de manter firme o lume da esperança nos dias futuros.

 

J.A.R. – H.C.

 

Pablo Neruda

(1904-1973)

 

A mi pueblo, en enero

 

Cuando el año

nacía,

recio, oloroso a pan de cordillera

y a manzano marino,

cuando mi patria pobre

su poncho de racimos desplegaba,

abrió la tiranía

el viejo hocico

de saurio desdentado

y mordió el corazón del territorio.

 

Pasó la ráfaga, volvió

por su camino

la simple vida amarga

o la alegría.

Muchos han olvidado,

han muerto muchos

y otros que hoy tienen boca no sufrieron

porque no eran nacidos.

 

No he olvidado ni he muerto.

 

Soy el árbol de enero

en la selva quemada:

la llama cruel que bailó en el follaje,

tal vez se fue, se fue la quemadura,

la ceniza voló,

se retorció

en la muerte la madera.

No hay hojas en los palos.

Sólo en mi corazón las cicatrices

florecen y recuerdan.

 

Soy el último ramo del castigo.

 

En: “Navegaciones y regresos” (1959)

 

Janeiro

(Serdyuk Boris Petrovich: artista ucraniano)

 

A meu povo, em janeiro

 

Quando o ano

nascia,

robusto, cheirando a pão de cordilheira

e a maçã marinha,

quando minha pobre pátria

desdobrava o seu poncho de racemos,

a tirania abriu

o seu velho focinho

de sáurio desdentado

e mordeu o coração do território.

 

Passou a rajada, voltou

por seu caminho

a vida simples e amarga

ou a alegria.

Muitos se esqueceram,

morreram muitos

e outros que hoje têm boca não sofreram

porque não eram nascidos.

 

Não esqueci nem morri.

 

Sou a árvore de janeiro

na selva queimada:

a chama cruel que dançou na folhagem

talvez tenha se apagado, apagado a queimadura,

as cinzas voaram

e a madeira

retorceu-se na morte.

Não há folhas nos lenhos.

Só em meu coração as cicatrizes

florescem e recordam.

 

Sou o último ramo do castigo.

 

Em: “Navegações e regressos” (1959)

 

Referência:

 

NERUDA, Pablo. A mi pueblo, en enero. In: __________. Antología poética. Edición de Rafael Alberti. 3. ed. Buenos Aires, AR: Planeta Bolsillo, 1998. p. 329-330.

  

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