Pondo-se a refletir sobre
um momento crítico na história de sua pátria – o Chile –, Neruda transmite a
angústia que lhe vai no espírito, ante a opressão política e os conflitos que
derivam de um modo de governar tirânico, frente ao qual há que se mostrar robustez
na persistência da memória, reconhecendo as cicatrizes do passado, para se encontrar
forças a lhe oporem resistência.
A julgar pelo ano de publicação
da obra na qual consta o poema – vale dizer, 1959 –, decerto o momento político
a que alude o poeta é o da chegada ao poder de um candidato direitista nas
eleições de 1958 – uma espécie de “sáurio desdentado”, feroz e desapiedado: entre
metáforas da espécie, os versos fluem doridos, enfatizando as injustiças que
marcam a história daquele país, sem deixar de manter firme o lume da esperança
nos dias futuros.
J.A.R. – H.C.
Pablo Neruda
(1904-1973)
A mi pueblo, en enero
Cuando el año
nacía,
recio, oloroso a pan
de cordillera
y a manzano marino,
cuando mi patria
pobre
su poncho de racimos desplegaba,
abrió la tiranía
el viejo hocico
de saurio desdentado
y mordió el corazón
del territorio.
Pasó la ráfaga,
volvió
por su camino
la simple vida amarga
o la alegría.
Muchos han olvidado,
han muerto muchos
y otros que hoy
tienen boca no sufrieron
porque no eran
nacidos.
No he olvidado ni he
muerto.
Soy el árbol de enero
en la selva quemada:
la llama cruel que
bailó en el follaje,
tal vez se fue, se
fue la quemadura,
la ceniza voló,
se retorció
en la muerte la
madera.
No hay hojas en los
palos.
Sólo en mi corazón
las cicatrices
florecen y recuerdan.
Soy el último ramo
del castigo.
En: “Navegaciones y
regresos” (1959)
Janeiro
(Serdyuk Boris
Petrovich: artista ucraniano)
A meu povo, em
janeiro
Quando o ano
nascia,
robusto, cheirando a
pão de cordilheira
e a maçã marinha,
quando minha pobre pátria
desdobrava o seu
poncho de racemos,
a tirania abriu
o seu velho focinho
de sáurio desdentado
e mordeu o coração do
território.
Passou a rajada,
voltou
por seu caminho
a vida simples e
amarga
ou a alegria.
Muitos se esqueceram,
morreram muitos
e outros que hoje têm
boca não sofreram
porque não eram
nascidos.
Não esqueci nem
morri.
Sou a árvore de
janeiro
na selva queimada:
a chama cruel que dançou
na folhagem
talvez tenha se
apagado, apagado a queimadura,
as cinzas voaram
e a madeira
retorceu-se na morte.
Não há folhas nos lenhos.
Só em meu coração as
cicatrizes
florescem e recordam.
Sou o último ramo do
castigo.
Em: “Navegações e
regressos” (1959)
Referência:
NERUDA, Pablo. A mi pueblo, en enero. In: __________. Antología poética. Edición de Rafael Alberti. 3. ed. Buenos Aires, AR: Planeta Bolsillo, 1998. p. 329-330.
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