Transformar em poesia
um assunto tão espinhoso quanto a separação de um casal – e, no caso, com
filhos –, é iniciativa para poucos, e Sant’Anna se sai muito bem: quase sempre
um evento emocionalmente estressante, o rompimento do vínculo conjugal impacta todos
os envolvidos – e, com mais intensidade, aqueles cuja capacidade de independência é mais limitada.
Os versos descrevem as
percepções da voz lírica – há sentenças que pressupõem ser a do consorte do
sexo masculino –, frente às mudanças promovidas pelo desenlace, resultando, no mais das vezes, na saída do esposo ou companheiro da casa, com os bens que lhe
foram outorgados por um presumível acordo. Afinal, “o amor ruiu e tem pressa de
ir embora, envergonhado”.
J.A.R. – H.C.
Affonso R. de Sant’Anna
(n. 1937)
Separação
Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos
das paredes e
lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas,
flores
e corpos de
intermeio.
Empilhar livros,
quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do
desamor.
Vizinhos se assustam
de manhã
ante os destroços
junto à porta:
– pareciam se amar
tanto!
Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que
sorridente
o amor aglutinava
festas e jantares.
Amou-se um certo modo
de despir-se,
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e
um certo
modo de botar a mesa.
Amou-se
um certo modo de
amar.
No entanto, o amor
bate em retirada
com suas roupas
amassadas, tropas de insultos,
malas desesperadas,
soluços embargados.
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no
amor?
Fartou-se o amor?
No quarto dos filhos
outra derrota à
vista:
bonecos e brinquedos
pendem
numa colagem de
afetos natimortos.
O amor ruiu e tem
pressa de ir embora
envergonhado.
Erguerá outra casa, o
amor?
Escolherá objetos,
morará na praia?
Viajará na neve e na
neblina?
Tonto, perplexo, sem
rumo
um corpo sai porta
afora
com pedaços de
passado na cabeça
e um impreciso
futuro.
No peito o coração
pesa
mais que uma mala de
chumbo.
Separação
(Edvard Munch:
artista norueguês)
Referência:
SANT’ANNA, Affonso
Romano de. In: __________. Intervalo amoroso & outros poemas escolhidos.
Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. p. 81-82. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v.
153.)
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário