Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Affonso Romano de Sant’Anna - Separação

Transformar em poesia um assunto tão espinhoso quanto a separação de um casal – e, no caso, com filhos –, é iniciativa para poucos, e Sant’Anna se sai muito bem: quase sempre um evento emocionalmente estressante, o rompimento do vínculo conjugal impacta todos os envolvidos – e, com mais intensidade, aqueles cuja capacidade de independência é mais limitada.

 

Os versos descrevem as percepções da voz lírica – há sentenças que pressupõem ser a do consorte do sexo masculino –, frente às mudanças promovidas pelo desenlace, resultando, no mais das vezes, na saída do esposo ou companheiro da casa, com os bens que lhe foram outorgados por um presumível acordo. Afinal, “o amor ruiu e tem pressa de ir embora, envergonhado”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Affonso R. de Sant’Anna

(n. 1937)

 

Separação

 

Desmontar a casa

e o amor. Despregar

os sentimentos

das paredes e lençóis.

Recolher as cortinas

após a tempestade

das conversas.

 

O amor não resistiu

às balas, pragas, flores

e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,

discos e remorsos.

Esperar o infernal

juízo final do desamor.

 

Vizinhos se assustam de manhã

ante os destroços junto à porta:

– pareciam se amar tanto!

 

Houve um tempo:

uma casa de campo,

fotos em Veneza,

um tempo em que sorridente

o amor aglutinava festas e jantares.

 

Amou-se um certo modo de despir-se,

de pentear-se.

Amou-se um sorriso e um certo

modo de botar a mesa. Amou-se

um certo modo de amar.

 

No entanto, o amor bate em retirada

com suas roupas amassadas, tropas de insultos,

malas desesperadas, soluços embargados.

 

Faltou amor no amor?

Gastou-se o amor no amor?

Fartou-se o amor?

 

No quarto dos filhos

outra derrota à vista:

bonecos e brinquedos pendem

numa colagem de afetos natimortos.

 

O amor ruiu e tem pressa de ir embora

envergonhado.

 

Erguerá outra casa, o amor?

Escolherá objetos, morará na praia?

Viajará na neve e na neblina?

 

Tonto, perplexo, sem rumo

um corpo sai porta afora

com pedaços de passado na cabeça

e um impreciso futuro.

No peito o coração pesa

mais que uma mala de chumbo.

 

Separação

(Edvard Munch: artista norueguês)

 

Referência:

 

SANT’ANNA, Affonso Romano de. In: __________. Intervalo amoroso & outros poemas escolhidos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. p. 81-82. (Coleção ‘L&PM Pocket’; v. 153.)

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