O poeta segue em sua
lida de escrever poemas, embora agora os perceba não como sendo criação sua,
senão o contrário, “vento sem flores” a soprar-lhe sobre a “alma ressequida”: a
arte agora o carrega pela vida, revolvendo elementos memoriais, a exemplo de
zéfiros que remetem ao tempo em que, ainda menino, galopava “um corcel de
sonhos”.
Se o avançar do tempo
ousa estancar aos poucos as fontes da vida – e, s.m.j., tal é o mote cardeal da
elegia de Caponi –, cumpre-nos então atribuir maior peso simbólico ao vasto
repositório de nossas reminiscências, com o fito de manter vivo o fogo dessa
“paixão subjacente” pela poesia, convertendo-a num êxtase com potencial para
tornar-se ponte revigorante em direção ao futuro.
J.A.R. – H.C.
Sérgio Galvão Caponi
(n. 1950)
Elegia da Paixão
Subjacente
Não sei se poemas eu
fiz ou se poemas me fizeram.
Houve um tempo em que
os gerava como quem
desfolha flores ao
vento.
Hoje eles surgem como
um vento sem flores
que sopra em minha
alma ressequida.
Já não faço versos.
Os versos é que me
fazem.
Escrevo,
e enquanto escrevo a
arte fica me olhando por sobre
os óculos
como uma velha que
espera sentada à roca da vida,
sempre a fiar, ... e
a fiar...
Às vezes,
cansada de mim,
faz tricô com os
ponteiros do relógio,
puxando o fio do
tempo de um novelo a seus pés,
um emaranhado de
memórias em que,
numa ponta perdida,
um menino galopa um
corcel de sonhos.
Morreu, porém, de
inanição e esgotamento este
lúdico ginete,
e a melhor parte de
mim desceu com ele ao vale
do esquecimento,
deixando, em meu
peito,
uma chaga cauterizada
pela chama escaldante
de um olhar.
Tornei-me permeável,
poroso,
absorvente,
e o mundo penetrou-me
pela vista, oleoso como
um unguento que nada
cura.
Emplastou de
realidade a esponja da sensação,
impregnou de
nostalgia a pluma da imaginação,
besuntou de
conformidade o fervilhar incontido
da paixão.
Está rombuda a pena
com que hoje escrevo.
Meu poema é só mais
uma mancha de tinta
espalhada
no papel da
existência
a borrar de negro e
de desilusão esta alma de poeta
que tudo pode.
Surpreendo-me, então,
afeito ao ato estéril
de pensar,
como um barco à
deriva,
à mercê de todas as
conjecturas...
Velha a fiar
(Nicolaes Maes: pintor
holandês)
Élégie de la Passion
Subjacente
Je ne sais pas si
j’ai fait les poèmes ou si ce sont
les poèmes qui m’ont
fait.
Il y eut un moment où
je les créais comme qui
défeuille fleurs au
vent.
Aujourd’hui ils
apparaissent comme un vent sans
fleurs qui souffle
dans mon âme desséchée.
Déjà je ne fais pas
de vers.
Ce sont les vers qui
me font.
J’écris,
et tandis que
j’écris, l’art me regarde par-dessus
ses lunettes
comme une vieille qui
attend assise au rouet de la vie,
toujours à filer...
et à filer...
Quelquefois,
fatiguée de moi,
elle tricote avec les
aiguilies de l’horloge,
en tirant le fil du
temps d’un pelote auprès de ses pieds,
un mélange de
souvenirs où,
dans un bout perdu,
un enfant galope sur
un coursier de rêves.
Il est mort,
pourtant, d’inanition et d’épuisement
ce genet ludique,
et la meilleure
partie de moi est descendue avec lui à
la vallée del’oubli,
en laissant, dans ma
poitrine,
une plaie cautérisée
par la flamme échauffante
d’um regard.
Je suis devenu
perméable,
poreux,
absorbant,
et le monde m’a
pénétré par la vue huileuse comme
un onguent que ne
guérit rien.
Il a plâtré de
réalité l’éponge de la sensation,
Il a imprégné de
nostalgie la plume de l’imagination,
Il a oint de
conformité la ferveur incontrolée
de la passion.
C’est émoussé la
plume avec laquelle j’écris
aujourd’hui.
Mon poème n’est plus
qu’une tache d’ancre
éparpillée sur le
papier de l’existence
à barbouiller de noir
et de désillusion cette
âme de poète que tout
peut.
Je me surprends,
alors, habitué à l’acte stérile
de penser,
comme un bateau à la
dérive,
a la merci de toutes
les conjectures...
Referência:
CAPONI, Sérgio. Elegia
da paixão subjacente / Élégie de la passion subjacente. Tradução ao francês de
Sérgio Caponi. In: CAPONI, Sérgio (Organização e Tradução). Poemas da paixão
subjacente: Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Sérgio Caponi. Campinas,
SP: Editora Átomo, 2007. Em francês: p. 122 e 124; em português: p. 123 e 125.
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