Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Sérgio Caponi - Elegia da Paixão Subjacente

O poeta segue em sua lida de escrever poemas, embora agora os perceba não como sendo criação sua, senão o contrário, “vento sem flores” a soprar-lhe sobre a “alma ressequida”: a arte agora o carrega pela vida, revolvendo elementos memoriais, a exemplo de zéfiros que remetem ao tempo em que, ainda menino, galopava “um corcel de sonhos”.

 

Se o avançar do tempo ousa estancar aos poucos as fontes da vida – e, s.m.j., tal é o mote cardeal da elegia de Caponi –, cumpre-nos então atribuir maior peso simbólico ao vasto repositório de nossas reminiscências, com o fito de manter vivo o fogo dessa “paixão subjacente” pela poesia, convertendo-a num êxtase com potencial para tornar-se ponte revigorante em direção ao futuro.

 

J.A.R. – H.C.

 

Sérgio Galvão Caponi

(n. 1950)

 

Elegia da Paixão Subjacente

 

Não sei se poemas eu fiz ou se poemas me fizeram.

Houve um tempo em que os gerava como quem

desfolha flores ao vento.

Hoje eles surgem como um vento sem flores

que sopra em minha alma ressequida.

 

Já não faço versos.

Os versos é que me fazem.

Escrevo,

e enquanto escrevo a arte fica me olhando por sobre

os óculos

como uma velha que espera sentada à roca da vida,

sempre a fiar, ... e a fiar...

Às vezes,

cansada de mim,

faz tricô com os ponteiros do relógio,

puxando o fio do tempo de um novelo a seus pés,

um emaranhado de memórias em que,

numa ponta perdida,

um menino galopa um corcel de sonhos.

 

Morreu, porém, de inanição e esgotamento este

lúdico ginete,

e a melhor parte de mim desceu com ele ao vale

do esquecimento,

deixando, em meu peito,

uma chaga cauterizada pela chama escaldante

de um olhar.

 

Tornei-me permeável,

poroso,

absorvente,

e o mundo penetrou-me pela vista, oleoso como

um unguento que nada cura.

Emplastou de realidade a esponja da sensação,

impregnou de nostalgia a pluma da imaginação,

besuntou de conformidade o fervilhar incontido

da paixão.

 

Está rombuda a pena com que hoje escrevo.

Meu poema é só mais uma mancha de tinta

espalhada

no papel da existência

a borrar de negro e de desilusão esta alma de poeta

que tudo pode.

 

Surpreendo-me, então, afeito ao ato estéril

de pensar,

como um barco à deriva,

à mercê de todas as conjecturas...

 

Velha a fiar

(Nicolaes Maes: pintor holandês)

 

Élégie de la Passion Subjacente

 

Je ne sais pas si j’ai fait les poèmes ou si ce sont

les poèmes qui m’ont fait.

Il y eut un moment où je les créais comme qui

défeuille fleurs au vent.

Aujourd’hui ils apparaissent comme un vent sans

fleurs qui souffle dans mon âme desséchée.

 

Déjà je ne fais pas de vers.

Ce sont les vers qui me font.

J’écris,

et tandis que j’écris, l’art me regarde par-dessus

ses lunettes

comme une vieille qui attend assise au rouet de la vie,

toujours à filer... et à filer...

Quelquefois,

fatiguée de moi,

elle tricote avec les aiguilies de l’horloge,

en tirant le fil du temps d’un pelote auprès de ses pieds,

un mélange de souvenirs où,

dans un bout perdu,

un enfant galope sur un coursier de rêves.

 

Il est mort, pourtant, d’inanition et d’épuisement

ce genet ludique,

et la meilleure partie de moi est descendue avec lui à

la vallée del’oubli,

en laissant, dans ma poitrine,

une plaie cautérisée par la flamme échauffante

d’um regard.

 

Je suis devenu perméable,

poreux,

absorbant,

et le monde m’a pénétré par la vue huileuse comme

un onguent que ne guérit rien.

 

Il a plâtré de réalité l’éponge de la sensation,

Il a imprégné de nostalgie la plume de l’imagination,

Il a oint de conformité la ferveur incontrolée

de la passion.

 

C’est émoussé la plume avec laquelle j’écris

aujourd’hui.

Mon poème n’est plus qu’une tache d’ancre

éparpillée sur le papier de l’existence

à barbouiller de noir et de désillusion cette

âme de poète que tout peut.

 

Je me surprends, alors, habitué à l’acte stérile

de penser,

comme un bateau à la dérive,

a la merci de toutes les conjectures...

 

Referência:

 

CAPONI, Sérgio. Elegia da paixão subjacente / Élégie de la passion subjacente. Tradução ao francês de Sérgio Caponi. In: CAPONI, Sérgio (Organização e Tradução). Poemas da paixão subjacente: Dante Alighieri, Francesco Petrarca e Sérgio Caponi. Campinas, SP: Editora Átomo, 2007. Em francês: p. 122 e 124; em português: p. 123 e 125.

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