O falante, decerto, perdeu
prematuramente o pai, não retendo na memória quaisquer recordações de seu
genitor, ora apenas visto num retrato, daí porque enceta imaginoso solilóquio
de como poderia ter sido o relacionamento entre eles, levantando hipóteses sobre
o quanto do semblante e do comportamento paterno remanesce em seu próprio rosto
e em sua forma de ser.
Massi, contudo, vai
mais além, ao formular versos que se abeberam em arquétipos literários,
religiosos e, até mesmo, psicanalíticos, como as alusões ao delito de
parricídio, à parábola do filho pródigo, à teoria freudiana acerca do pai e os
seus consequentes embaraços, bem assim à ideia do pai como a figura que estabelece
as leis a serem cumpridas no âmbito familiar.
J.A.R. – H.C.
Augusto Massi
(n. 1959)
Ser
O pai que não tive
hoje ainda seria
moço?
O que dele em mim
sobrevive
guarda a forma de um
esboço?
O pai que nunca vi
será que o encontro?
Severo, louco, fora
de si
ou apoiado em meu
ombro?
Do pai que não tive,
dizem, herdei o
rosto.
O que dele em mim
vive
é signo póstumo ou
oposto?
O pai que desejei
num colóquio abstrato
respondeu-me: “Nada
sei”.
Exilou-se em seu
retrato.
O pai que não matei
culpa-me pelo
antiato.
Invoca a irredutível
lei,
o cumprimento do
pacto.
O pai que em outros
persigo
é saudade a que me
entrego.
Matéria de seres tão
antigos
quantos filhos dentro
carrego?
O pai que procuro
sopro, essência,
limite
desaparece no quarto
escuro.
Curva da carne,
sinais, grafite.
E nesses avanços sem
volta
perde-se o filho
pródigo.
Nem recordações, nem
revolta
a morte é nosso único
código.
Em: “Negativo:
1982-1990” (1991)
Pai e Filho
(Lewis A. Ramsey:
pintor norte-americano)
Referência:
MASSI, Augusto. Ser. In:
PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários). Antologia comentada
da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006. p. 266-267.
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