Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 13 de agosto de 2023

Augusto Massi - Ser

O falante, decerto, perdeu prematuramente o pai, não retendo na memória quaisquer recordações de seu genitor, ora apenas visto num retrato, daí porque enceta imaginoso solilóquio de como poderia ter sido o relacionamento entre eles, levantando hipóteses sobre o quanto do semblante e do comportamento paterno remanesce em seu próprio rosto e em sua forma de ser.

 

Massi, contudo, vai mais além, ao formular versos que se abeberam em arquétipos literários, religiosos e, até mesmo, psicanalíticos, como as alusões ao delito de parricídio, à parábola do filho pródigo, à teoria freudiana acerca do pai e os seus consequentes embaraços, bem assim à ideia do pai como a figura que estabelece as leis a serem cumpridas no âmbito familiar.

 

J.A.R. – H.C.

 

Augusto Massi

(n. 1959)

 

Ser

 

O pai que não tive

hoje ainda seria moço?

O que dele em mim sobrevive

guarda a forma de um esboço?

 

O pai que nunca vi

será que o encontro?

Severo, louco, fora de si

ou apoiado em meu ombro?

 

Do pai que não tive,

dizem, herdei o rosto.

O que dele em mim vive

é signo póstumo ou oposto?

 

O pai que desejei

num colóquio abstrato

respondeu-me: “Nada sei”.

Exilou-se em seu retrato.

 

O pai que não matei

culpa-me pelo antiato.

Invoca a irredutível lei,

o cumprimento do pacto.

 

O pai que em outros persigo

é saudade a que me entrego.

Matéria de seres tão antigos

quantos filhos dentro carrego?

 

O pai que procuro

sopro, essência, limite

desaparece no quarto escuro.

Curva da carne, sinais, grafite.

 

E nesses avanços sem volta

perde-se o filho pródigo.

Nem recordações, nem revolta

a morte é nosso único código.

 

Em: “Negativo: 1982-1990” (1991)

 

Pai e Filho

(Lewis A. Ramsey: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

MASSI, Augusto. Ser. In: PINTO, Manuel da Costa (Edição, Seleção e Comentários). Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006. p. 266-267.

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