Como se fosse uma
espécie de parúsia, à maneira cristã, a voz lírica apregoa um abstrato
ministério acerca de sua “segunda madrugada”, assim dizendo, “pensamentos
inteiros a seres ausentes”, enleados em atmosfera de sonho, sonho esse do qual
não se desfez – a despeito da assunção do “compromisso de compra e venda” –, muito
embora, de fato, tenha alienado o “terreno” onde se deram todos os alegorizados
eventos.
Em amplos termos,
pareceu-me que o autor estivesse a tergiversar sobre as possibilidades de construir
um lar em dado sítio, quando então se enredou em especulações algo enigmáticas
sobre como seria o convívio por ali, ao final das quais concluiu pela sobredita
renúncia provisória – afinal, os sonhos não morrem!
J.A.R. – H.C.
Jorge de Cunha Lima
(1931-2022)
Compromisso de Compra
e Venda
A segunda madrugada
Plantei-a entre
araucárias
De uma natureza
errante
Onde o frio do ego
Apascentou as tépidas
Ovelhas da alma
E a névoa cegou meus
olhos
Aos desejos
supérfluos
No horizonte
Uma arquitetura de
pedra
E nas pedras
Uma arquitetura de
preces
A segunda madrugada
Plantei-me entre ela
Árvore de emoções
E de carne a caule
Sustentei meu peso
Com folhas de outono
Com flores de
primavera
Até o peso seco
Do inverno
Comi pinhões
Manobrei o carro
Nos limites terrenos
Do céu
Aventurei-me a
projetar
A vida projetos de
morar
Sem fim entre vidros
e lareira
Previ um cão a
completar
O número ímpar da
família
Levei discos para
aumentar
O som leia-se
insuficiente
Do vento
Gosto de capas de
disco
Nos dias em que me
ausento
Nos dias em que me
assumo
Gosto de ouvir música
Pelo fio infinito do
disco
Sulco isento e lento
Como as diligências
Na segunda madrugada
Ministrei pensamentos
Inteiros a seres
ausentes
Por fim vendi o terreno
Mas não transferi de
mim
O elemento imortal do
sonho
Primeiros passos, ao
modo de Millet
(Vincent van Gogh:
pintor holandês)
Referência:
LIMA, Jorge de Cunha.
Compromisso de compra e venda. In: __________. Véspera de Aquarius. Rio
de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1977. p. 147-148. (Coleção ‘Literatura e Teoria
Literária’; v. 8)
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