Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 10 de setembro de 2017

José Régio - Cântico Negro

Alguns poemas de outros autores bem que poderiam ter sido escritos por mim, enorme é a identidade entre o que sou e aquilo que expressam. Vejam este: o prazer de caminhar por onde, de fato, me sinta satisfeito, e não por onde me ordenam “vem por aqui!”.

Reconheço que, às vezes, a escolha do caminho alternativo, em muitas de minhas decisões, levou-me a pontos onde não esperava chegar ou, ainda, foi mera pirraça para troçar com alguém. Mas o certo é que minhas deliberações, na maioria das vezes, caminham em direção àquilo que considero correto. Claro está: sob o meu ponto de vista!

E escolher este ou aquele rumo faz toda a diferença no resultado final, tal como o observa o também poeta Robert Frost, em “The Road not Taken” (“O Caminho não Trilhado”), objeto desta postagem no bloguinho.

J.A.R. – H.C.

José Régio
(1901-1969)

Cântico Negro


“Vem por aqui” – dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui!”.
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
– Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
– Sei que não vou por aí!

Cruzamentos
(George Schill: artista norte-americano)

Referência:

RÉGIO, José. Cântico negro. In: __________. Poemas de deus e do diabo. 4. ed. Lisboa, PT: Portugália, 1955. p. 108-110.

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