Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Murilo Mendes - Cantiga de Malazarte

O eu lírico se identifica com Malazarte, a tradicional figura de contos populares da Península Ibérica, tecendo, desse modo, um perfil de como se lhe parece a personalidade daquele que se fixou indelevelmente no imaginário do povo brasileiro.

Malazarte, no fundo, é um arquétipo representado em suas aventuras picarescas, pelo menos em Portugal, onde aparece como um tolo que consegue fazer o melhor de qualquer situação, principalmente por acaso ou por pura sorte.

No Brasil, contudo, é um malandro que usa sua inteligência para superar os poderosos, os ricos e os violentos. Ele não tem nada além de seus truques. Embora nunca trabalhe, consegue dinheiro enganando aqueles que querem dominá-lo. Punição ou remorso lhe são desconhecidos. Em seu mundo ideal, não há lugar para castigo. A mentir, consegue vender o que tem: nada. Trata-se, portanto, de um tipo rebelde que se recusa a trabalhar, a ter um patrão, a ser oprimido, a obedecer à lei. Se, desse modo, incorre no mal, ele o faz tão inocentemente quanto uma criança.

J.A.R. – H.C.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Cantiga de Malazarte

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo.

Construção
(Juarez Machado: artista catarinense)

Referência:

MENDES, Murilo. Cantiga de Malazarte. In: Poemas: 1925-1929 & Bumba-meu-Poeta: 1930-1931. Organização, introdução, variantes e bibliografia por Luciana Stegagno Picchio. 3. reimp. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1988. p. 42.

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