O eu lírico se identifica com Malazarte, a tradicional figura de contos
populares da Península Ibérica, tecendo, desse modo, um perfil de como se lhe
parece a personalidade daquele que se fixou indelevelmente no imaginário do
povo brasileiro.
Malazarte, no fundo, é um arquétipo representado em suas aventuras
picarescas, pelo menos em Portugal, onde aparece como um tolo que consegue
fazer o melhor de qualquer situação, principalmente por acaso ou por pura
sorte.
No Brasil, contudo, é um malandro que usa sua inteligência para superar
os poderosos, os ricos e os violentos. Ele não tem nada além de seus truques. Embora
nunca trabalhe, consegue dinheiro enganando aqueles que querem dominá-lo.
Punição ou remorso lhe são desconhecidos. Em seu mundo ideal, não há lugar para
castigo. A mentir, consegue vender o que tem: nada. Trata-se, portanto, de um
tipo rebelde que se recusa a trabalhar, a ter um patrão, a ser oprimido, a
obedecer à lei. Se, desse modo, incorre no mal, ele o faz tão inocentemente
quanto uma criança.
J.A.R. – H.C.
(1901-1975)
Cantiga de Malazarte
Eu sou o olhar que
penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele
e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que
tenha visto,
todas as coisas se
gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas
almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas
penduradas na terra,
tiro os cheiros dos
corpos das meninas sonhando.
Desloco as
consciências,
a rua estala com os
meus passos,
e ando nos quatro
cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo,
glorifico o soldado vencido,
não posso amar
ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido
a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas
ao mendigo.
Sou o espírito que
assiste à Criação
e que bole em todas
as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado,
longe como o diabo,
nada me fixa nos
caminhos do mundo.
Construção
(Juarez Machado:
artista catarinense)
Referência:
MENDES, Murilo. Cantiga de Malazarte.
In: Poemas: 1925-1929 & Bumba-meu-Poeta:
1930-1931. Organização, introdução, variantes e bibliografia por Luciana
Stegagno Picchio. 3. reimp. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1988. p. 42.
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