O Sorgue é o rio que passa na aldeia do poeta, símbolo da vida a jorrar,
apesar de todo o maltrato a que é submetido. Abandonado, castigado, ele se
presta a atender a todos, independentemente de sua condição material ou, até
mesmo, mental: crianças, pobres, trabalhadores, loucos de toda espécie...
De fato é um rio local, enclausurado no íntimo do autor, mas que se pode
entender em sua universalidade, belo e sempre prestes a ressuscitar uma
torrente de imagens indelevelmente registradas num coração que buscar reviver
os momentos epifânicos da infância, para que possam ser também apreciados por
sua musa e amante, Yvonne Zervos, a quem dedica o poema.
J.A.R. – H.C.
René Char
(1907-1988)
La Sorgue
Chanson pour Yvonne
Rivière trop tôt
partie, d’une traite, sans compagnon,
Donne aux enfants de
mon pays le visage de ta passion.
Rivière où l’éclair
finit et où commence ma maison,
Qui roule aux marches
d’oubli la rocaille de ma raison.
Rivière, en toi terre
est frisson, soleil anxiété.
Que chaque pauvre
dans sa nuit fasse son pain de ta moisson.
Rivière souvent
punie, rivière à l’abandon.
Rivière des apprentis
à la calleuse condition,
Il n’est vent qui ne
fléchisse à la crête de tes sillons.
Rivière de l’âme
vide, de la guenille et du soupçon,
Du vieux malheur qui
se dévide, de l’ormeau, de la compassion.
Rivière des farfelus,
des fiévreux, des équarrisseurs,
Du soleil lâchant sa
charrue pour s’acoquiner au menteur.
Rivière des meilleurs
que soi, rivière des brouillards éclos,
De la lampe qui
désaltère l’angoisse autour de son chapeau.
Rivière des égards au
songe, rivière qui rouille le fer,
Où les étoiles ont
cette ombre qu’elles refusent à la mer.
Rivière des pouvoirs
transmis et du cri embouquant les eaux,
De l’ouragan qui mord
la vigne et annonce le vin nouveau.
Rivière au coeur jamais
détruit dans ce monde fou de prison,
Garde-nous violent et
ami des abeilles de l’horizon.
Dans: “Fureur et mystère” (1948)
L’Isle-sur-Sorgues
(Tony Brummel Smith:
artista inglês)
O Sorgue
Canção para Ivonne
Rio que parte cedo
demais, de uma só vez, sem companheiro,
Dá aos infantes do
meu país o rosto de tua paixão.
Rio onde finda o clarão
e onde começa a minha casa,
Que faz rolar pelos
degraus do olvido a rocalha de minha razão.
Rio, em ti a terra é
estremecimento, o sol, ansiedade.
Que cada pobre em tua
noite faça o seu pão de tua colheita.
Rio frequentemente
castigado, rio abandonado.
Rio dos aprendizes de
calejada condição,
Não há vento que não se
curve ante a crista de teus sulcos.
Rio de alma vazia, de
trapos e de suspeição,
Do velho infortúnio
que se desdobra, dos olmos, da compaixão.
Rio dos excêntricos, dos
febris, dos esquartejadores,
Do sol a largar o
arado para envolver-se com os mendazes.
Rio dos melhores que
si mesmos, rio de névoas que despontam,
Da lâmpada que mitiga
a angústia à volta de seu chapéu.
Rio de reverências ao
sonho, rio que oxida o ferro,
Onde as estrelas têm
essa sombra que recusam ao mar.
Rio dos poderes
transmitidos e do grito a embocar as águas,
Do furacão que investe
sobre a vinha e anuncia o vinho novo.
Rio de coração jamais
destruído neste mundo louco de prisão,
Preserva-nos violento
e amigo das abelhas do horizonte.
De: “Furor e Mistério” (1948)
Referência:
CHAR, René. La Sorgue. In: DÉCAUDIN,
Michel (Éd.). Anthologie de la poésie
française du XXe siècle. Préface de Claude Roy. Édition revue et
augmentée. Paris, FR: Gallimard, 2000. p. 524-525.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário